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    Piazzolla: Os Anos do Tubarão
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Piazzolla: Os Anos do Tubarão

    A imagem do gênio

    por Bruno Carmelo

    Uma imagem da infância de Piazzolla. Na narração em off, o filho dele (cujo rosto ainda não vimos) fala sobre o temperamento forte do pai. Uma cena de Piazzolla tocando quando adulto. Outra cena do bandoneonista nos palcos, desta vez fornecendo a trilha sonora para seu próprio depoimento, em imagem de arquivo. Mais um trecho da infância. Uma cena do velho artista dizendo que foi rejeitado em seu próprio país. Uma entrevista de décadas antes, na qual o som da fala é sobreposto a fotos, que são, por sua vez, sobrepostas a um tango. Do início ao fim, Piazzola: Os Anos do Tubarão brinca de embaralhar a linha do tempo, as ferramentas de linguagem, a voz registrada do pai em contraste com o depoimento atual do filho.

    O resultado é ambicioso: documentários biográficos que fogem à estrutura “depoimentos + material de arquivo”, partindo do berço ao túmulo, são sempre muito bem-vindos. A dissociação entre som e imagem, na maior parte do filme, também permite uma série de agenciamentos criativos, como se uma fala do músico jovem comentasse uma foto dele de décadas mais tarde. O ritmo é marcado por transformações rápidas, cheias de furor, em estrutura análoga à de um concerto: existem as músicas dançantes, aquelas calmas, para o respiro dos artistas e da plateia, antes de alguns hits esperados. Neste sentido, a montagem se assemelha a uma partitura musical, fazendo com que o filme sobre Piazzolla tenha objetivos estéticos próprios, sem se tornar dependente de seu objeto de estudo.


    No entanto, tamanha desconstrução produz um resultado confuso. Pode-se compreender, em linhas gerais, as idas e vindas do protagonista entre Argentina, Estados Unidos e França, assim como a ideia de que ele transformou o tango, de um gênero puramente dançante a um estilo mais apropriado à escuta. Mesmo assim, a edição faz com que se confunda a voz do pai e a voz do filho, misturando as décadas e os diversos grupos em que Piazzolla tocou. Vamos do aprendizado infantil ao sucesso com o Octeto Electronico, ao Quinteto, e de volta à infância. Esta estrutura prejudica a compreensão de relações causais - como o artista teria passado de um grupo a outro? -, privilegiando a menção a sucessivos pontos de virada.

    Além disso, o documentário se delicia em reforçar a imagem de gênio louco e intempestivo de Piazzolla. Frases como “Eu apenas revolucionei o tango” se acumulam na edição, enquanto o artista se compara a Picasso e responde ao próprio filho que nunca dedicou muita atenção às crianças porque era “uma pessoa importante”. Obviamente, cabia o diretor Daniel Rosenfeld registrar o ego do músico e a maneira como este temperamento influenciou seus relacionamentos. No entanto, a insistência é tamanha que termina por reforçar o imaginário romântico do artista perturbado, aquele a quem se perdoam falhas de caráter em nome da bela arte que nos proporciona. O filme é bastante condescendente com os rompantes de Piazzolla.

    Aos fãs, restará o prazer de escutar trechos das composições mais famosas acompanhados de imagens inéditas, além de presenciar um farto e bem selecionado material de arquivo. O documentário também merece ser notado pelo uso expressivo do silêncio, principalmente após alguma apresentação do músico. Poucos projetos biográficos, em especial sobre música, ousam criar cenas inteiramente silenciosas. Mas para quem desejar compreender a evolução pessoal e artística de Piazzolla e sua inserção dentro de um contexto musical mais amplo - a comparação com outros artistas, a relação com o contexto sociopolítico - precisará procurar em outras fontes.

    Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.

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