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    Demons
    Críticas AdoroCinema
    1,5
    Ruim
    Demons

    Delírio caseiro

    por Bruno Carmelo

    Seria importante ressaltar, desde o princípio, que um filme trash não pode ser interpretado com as mesmas ferramentas de análise utilizadas para uma produção comercial, ou ainda para uma grande obra do circuito de festivais. Os critérios precisam se adequar: o trash trabalha com outra linguagem – muitas vezes a negação dos códigos padronizados -, outras mensagens, e outra maneira de expressar a sua criatividade. Exigir de uma produção do gênero que a imagem seja polida e os arcos narrativos dos personagens se desenvolvam de modo linear pareceria absurdo.

    Levando em consideração estes questionamentos, o trash tampouco pode ser confundido com a ausência de critérios, o “qualquer coisa vale”. Uma análise, neste caso, precisa evitar a condescendência com questões de produção (“Mas eles tiveram pouco dinheiro”), narração (“Mas a intenção era ser bagunçado mesmo”) ou ideologia (“Não tem sentido mesmo, deixa isso para os filmes convencionais”). Existem produções caseiras, trash e afins muitíssimo bem realizadas dentro de seus propósitos, sabendo utilizar a linguagem para subverter expectativas e propor um conteúdo em diálogo com a percepção social – em geral, empregando a linguagem marginal para representar a vida de pessoas marginais.

    Todas essas precauções são importantes para refletir sobre um filme como Demons, que poderia ser considerado genial ou ridículo, a gosto. Dentro da sala de cinema, as pessoas se dividiam facilmente entre essas duas categorias: enquanto uma parte ria bastante e aplaudia durante a projeção, outros reclamavam, dormiam, e vários abandonaram a sessão após os primeiros trinta minutos (o que não constitui mérito nem demérito, vale ressaltar). No centro do projeto estão uma atriz insegura, Vicki (Yang Yanxuan Vicki), que acredita estar enlouquecendo. A situação se agrava quando ela é escalada para uma peça de teatro dirigida por um homem sádico e manipulador, Daniel (Glenn Goei), que logo passa a duvidar de sua própria sanidade.

    O filme utiliza uma câmera caseira, com textura digital de baixa qualidade, além da fotografia amadora, efeitos de som e direção de arte igualmente simples. O roteiro busca transmitir a ideia de loucura essencialmente através de diálogos, com os atores transtornados refletindo sobre sua sanidade mental enquanto contorcem as expressões em close-up, o que acentua tanto o aspecto grotesco quanto o efeito cômico das atuações não profissionais. “Eu sou a pessoa morando dentro de você”, responde uma voz ao telefone, para o desespero de Vicki. “Podem me comer! Me devorem! Assim eu sempre serei uma parte de vocês!”, grita Daniel, desesperado, contra os inimigos reais ou imaginários que se vingam de seus métodos desumanos de trabalho.

    Demons pretende funcionar como experiência metalinguística sobre as dificuldades de fazer uma obra de arte e executá-la em grupo. O diretor Daniel Hui brinca com a própria direção: “Então quer dizer que não estamos agradando o público?”, exclama o diretor de teatro, óbvio alter-ego do cineasta. Hui cita Júlio Cortazar, enquanto faz alusões a David Lynch. As referências são claras, e a proposta de um pesadelo psicanalítico, também. No entanto, é difícil comprar a proposta quando as cenas parecem ter sido concebidas na hora da filmagem, caso a caso, sem pensar no conjunto. Cada momento de delírio é filmado de uma maneira diferente, cada cena sobre a loucura de Vicki ou Daniel adquire um novo enquadramento, luz, um tom sério ou patético. A primeira cena do filme simula o falso documentário, já a última parte para um delírio sangrento e multicolorido.

    Existe uma vontade evidente de fazer o máximo possível com poucos recursos, ainda que isso implique numa cacofonia. A obra opera através de esquetes isoladas, com algumas boas ideias (o coral de mascarados, o poder do totem) misturadas a várias decisões questionáveis (a materialização da voz ao telefone, o sumiço de Vicki na segunda metade, o uso esporádico do preto e branco, do saturado, do efeito estroboscópico). Paira uma sensação de vazio, ou ainda de travessura juvenil, que sabe muito bem com que ferramentas deseja brincar, mas não parece ter muito a dizer. A obra, afinal, deveria se completar no olhar do público, ao invés do prazer de seus criadores.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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