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    Vivendo no Limite – O Retrato de Uma Geração Perdida
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Vivendo no Limite – O Retrato de Uma Geração Perdida

    Homens impotentes

    por Bruno Carmelo

    O início deste drama se envereda por caminhos familiares. Durante uma festa, um jovem russo toma alguma droga e, alucinado, corre nu por um apartamento. As imagens de delírio são construídas através de lentes embaçadas, sobreposições de imagens e uma câmera que nunca para. Após um acidente, os jovens Pete (Aleksandr Kuznetsov) e Sasha (Filipp Avdeyev) vão a uma festa de música eletrônica, onde dançam até não poderem mais, em nova sequência de delírio.

    Aparentemente, o jovem cineasta Alexander Gorchilin aposta na estética do choque para denunciar um mundo vazio e vicioso – algo não muito distante do trabalho de Gaspar Noé, por exemplo. “Primeiro, você se torna um provocador. Depois, um artista famoso e rico”, afirma cinicamente um personagem, no que parece ser uma crítica auto referente, aplicável ao projeto como um todo. Estaríamos no caminho da provocação retórica, que confunde a exploração cruel do sexo e da violência com prova de coragem artística? No voyeurismo dos corpos dos atores, no fetichismo da impressão de realidade?

    Ora, a câmera logo se acalma, e Acid busca as origens do desejo de escapismo dos dois amigos. Pelo caminho, surge um retrato nada animador da Rússia contemporânea, marcado por famílias desintegradas ou negligentes, falta de perspectiva profissional, ausência de respaldo das instituições tradicionais, sensação de inconsequência e impunidade. Talvez por isso, durante outra festa, Pete beba um líquido ácido utilizado na criação de esculturas, apesar de conhecer o efeito corrosivo do material: ele procura sentir algo, controlar sua própria vida de certo modo, mesmo que pela via da autodestruição.

    O “ácido” do título, portanto, diz respeito à droga comum em festas, mas também ao ácido literal, além de ser empregado como analogia à água benta em determinada cena. Esta é trajetória errante dos dois homens descontentes em suas próprias casas, sem trabalho nem estudos. Aos poucos, os supostos encrenqueiros se revelam homens carentes e emasculados: Sasha não pode fazer sexo porque acabou de ser circuncisado e ainda sente dores no pênis; Pete não pode usar a boca após o incidente com o ácido, tendo que usar um gigante esparadrapo sobre os lábios.

    Partindo do início chocante, embalada em música eletrônica, a narrativa se transforma numa viagem melancólica e difusa. É difícil antecipar para onde vai a trama, que acompanha os garotos sem rumo determinado, e depois se permite grandes lapsos na montagem – Pete é esquecido durante mais de 20 minutos quando a história prefere se concentrar em Sasha. O sexo, quando enfim ocorre de modo redentor, é triste, interrompido, desconfortável para ambas as partes. O gozo também não será uma alternativa de felicidade aos protagonistas.

    Gorchilin demonstra pleno domínio dos enquadramentos em scope, fazendo uso instigante dos espaços. Através dos conjuntos habitacionais sujos e vazios de Pete, e da vida cômoda e burguesa de Sasha, o filme desenha o abismo entre classes sociais sem precisar exteriorizá-lo em diálogos. Os atores principais, com seus olhos vidrados e corpos inertes, fazem o necessário para não saturar o discurso – afinal, eles estão no centro de todos os conflitos, ainda que demonstrem pouquíssimo controle de suas trajetórias.

    Deste modo, Pete e Sasha tornam-se receptores de uma série de estímulos violentos ao redor, sobrevivendo como podem. Acid se revela um belo filme niilista, representando o fracasso dos laços sociais de modo complexo e multifacetado, sem ousar propor alguma alternativa nem solução para o futuro. De acordo com o desenrolar da trama, a saída para os jovens abandonados pelo sistema (tanto ricos quanto pobres) se encontra ou na sobrevivência precária ou no suicídio. Ao fim, os letreiros surpreendem ao dedicar a obra “às mães e aos pais”, uma ironia feroz para um retrato destituído de símbolos paternos e maternos. Para Gorchilin, fracassamos como sociedade.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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