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    The Stone Speakers
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    The Stone Speakers

    Cidades reinventadas

    por Bruno Carmelo

    Neste documentário bósnio, o diretor Igor Drljaca encara um desafio considerável à linguagem cinematográfica: retratar não exatamente as cidades que foram abandonadas, nem aquelas destruídas ou reconstruídas fisicamente, e sim os vilarejos que se reinventaram simbolicamente. Trata-se de lugares que se converteram em zonas de turismo religioso, histórico e cultural. O cineasta se dedica a filmar algo que não seria visível, por definição: um grupo de pedras que supostamente emanam boas energias, ou a fachada de um estabelecimento onde, décadas atrás, se lutou contra Hitler.

    O filme adota um distanciamento impressionante, primeiro em relação aos discursos: enquanto as dezenas de guias turísticos e moradores locais dissertam sobre as transformações em Medjugorje, Visoko, Visegrad e Tuzla, a imagem se afasta de seus corpos e aproveita para mostrar multidões orando, peregrinando em grupos, deslocando-se por uma trilha na floresta. Em nenhum momento os interlocutores são identificados. Além disso, após uma breve apresentação destas pessoas de corpos inteiros, em silêncio, suas vozes se convertem em narração off. Não existe um único close-up em todo o projeto, ao passo que jamais ouvimos uma voz sincrônica ao movimento das bocas.

    A distância se torna ainda maior, e literal, pelo modo como são filmados os espaços. Drljaca posiciona sua câmera muito longe das multidões, transformando-as em meras silhuetas ocupando o espaço. Além de provocar um senso de impessoalidade – o olhar da direção não imerge nesses lugares, não pertence a eles -, a escolha acaba por valorizar a cidade como personagem principal, ao invés dos humanos que as ocupam e visitam. O diretor prefere o coletivo ao individual, a experiência sociológica à psicológica. Estamos falando de grandes movimentos históricos, ao invés de experiências pessoais.

    No início, uma fábrica abandonada é descrita por uma operária como um se fosse um amigo saudoso: “Foi ela que vestiu meus filhos e os colocou na escola”. Em outro momento, as ruínas de um hotel permitem imaginar a ocupação do imóvel antes da guerra. Os espaços são personalizados, vestidos e revestidos de valor, podendo mudar ao longo do tempo. Uma das cidades, por exemplo, tornou-se mais conhecida após ser citada num best seller da literatura bósnia. Assim nasce (ou morre) o interesse por uma cidade; assim a geografia se transforma, economicamente e geograficamente (pela presença de novas pessoas).

    Para o público médio, talvez The Stone Speakers soe árido demais. Ele jamais facilita a tarefa de compreensão histórica, tampouco fornece figuras humanas com quem o espectador possa se identificar. Este é um filme apaixonado por conceitos, soando consequentemente intelectual, abstrato demais. Mesmo assim, é impressionante a ousadia do diretor em romper com as regras do documentário clássico e observar as cidades como paisagens ao invés de lugares de convívio diário.

    Enquanto isso, fornece um generoso painel de crenças, superstições, ideologias e valores pessoais que transparecem nos depoimentos. A cena com uma dupla de mulheres sentadas ao lado de uma pedra gigantesca, dentro de uma caverna obscura, acreditando ser curadas pelo poder do mineral, não é carregada de qualquer forma de julgamento. O diretor observa estas transformações com a atenção de um pesquisador minucioso, sem possuir qualquer causa específica a defender. The Stone Speakers encontra-se num estágio especial de detecção e dissecção de um fenômeno, limitando-se a sugerir as suas causas e consequências. É uma forma modesta de olhar, que delimita com precisão seus objetivos enquanto investigação e enquanto cinema.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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