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    O Mistério do Gato Chinês
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    O Mistério do Gato Chinês

    Show de mágica

    por Bruno Carmelo

    A multidão se aproxima de um artista de rua. Ele planta sementes na terra e, segundos depois, as plantas crescem até darem origem a melancias gigantes. O público aplaude, extático, sem compreender a magia das frutas instantâneas. “É tudo ilusão. Apenas uma das melancias é verdadeira”, revela o monge Kûkai (Shôta Sometani) ao amigo, o poeta Bai Letian (Huang Xuan). “Como você sabe?”, ele pergunta. Mas o monge não responde. O público, assim como Bai, jamais saberá a resposta. A fábula das melancias será citada duas outras vezes ao longo desta trama em que nada é o que aparenta ser: a fruta se torna um peixe, o gato se transforma em pessoa, um palco vira uma rosa gigantesca, a rosa vira uma piscina de sangue, dois acrobatas se tornam gaivotas, um cadáver ganha vida.

    Depois da palavra “gato”, talvez “ilusão” seja o termo mais repetido nos diálogos de O Mistério do Gato Chinês. Os protagonistas precisam descobrir tanto a origem do gato sanguinário (De onde vem? Por que ataca o imperador e o chefe da guarda imperial?) quanto a natureza das imagens à sua frente. Neste caminho, questionam se existe verdade nas imagens ilusórias, se é possível alguém preferir a ilusão ao real e se, em última instância, toda realidade não seria uma forma de interpretação. O relativismo extremo desta produção sino-japonesa leva a um questionamento do cinema em si: afinal, no que podemos acreditar? Quem está dizendo a verdade? Quem garante que aquele animal na verdade não é um ser humano fantasiado? Se não podemos acreditar em nossos próprios olhos, como formar um conhecimento sobre o mundo retratado?

    Por mais fascinante que seja o jogo entre o real e o falso, o tema da ilusão faz com que a produção adentre caminhos próximos do aleatório. Afinal, neste mundo de transformações mágicas, qualquer personagem ou ação pode acontecer na nossa frente – e, de fato, muitas guinadas se sucedem. Para contar a lenda real da Sra. Yang (Kitty Zhang), concubina do imperador durante a dinastia Tang, o roteiro aposta em lendas dentro da lenda, fantasias paralelas e entrecruzadas, no presente e no passado, envolvendo uma dúzia de personagens. O diretor Chen Kaige efetua uma viagem labiríntica, demonstrando mais prazer em embaralhar as peças do que em ordená-las. Sua câmera flutua por todos os lados, os cenários se desfazem em fumaça e se transformam em novos espaços, cada imagem é tingida por um filtro azulado, esverdeado, amarelado.

    Este é o território da transitoriedade por excelência: ao lidar com a passagem entre a vida e a morte, Kaige elege personagens que ressuscitam, adotam novas formas, fingem estar mortos, ou que se encontram mortos e vivos ao mesmo tempo – como gatos de Schrödinger. Os efeitos visuais ostensivos servem à atmosfera abstrata, etérea, dificultando discernir entre o que de fato existe diante dos nossos olhos (os cenários seriam reais? Até que ponto os atores são manipulados?) e o que nasce da pós-produção. Em outras palavras, ao invés de brincar com o real absoluto ou a ilusão completa, o filme se diverte na fronteira entre ambos. Ele se contenta em oferecer uma extravagante brincadeira conceitual, repleta de imagens mutáveis porque podem sê-lo. Este é ao mesmo tempo um projeto autoral e um objeto de vaidade para Kaige.

    Isso não significa que tamanha pirotecnia sirva bem à construção da história. É fácil se perder nas tramas e subtramas (seria este o objetivo?), limitando-se ao desfile de imagens chamativas por si próprias, independentemente daquilo que retratam. Para o público ocidental, a narrativa desconexa diverge do senso de propósito habitual dos filmes norte-americanos: a história de O Mistério do Gato Chinês não parece nos conduzir a um final específico, ela não se constrói para um desfecho e nem se justifica por ele. Talvez por isso cause tamanho estranhamento aos nossos olhos pragmáticos. “Para que serve esta cena, por que este personagem fala estas palavras?”, nos indagariam os guias de roteiro cinematográficos. Ora, Kaige acredita no deleite da imagem pela imagem, no passeio fluido dentro de uma máquina de ilusões onde a sensação se sobrepõe à razão.

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