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    O Rio
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Rio

    A crueldade das crianças e dos adultos

    por Bruno Carmelo

    Aslan e seus quatro irmãos mais novos vivem “como selvagens”, de acordo com a mãe deles. Sem irem à escola nem terem contato com a cidade grande, por ordens do pai, eles passam os dias brincando pela casa, estudando eventualmente com o irmão mais velho, trabalhando com os animais, fazendo tijolos e regando as plantações. O pai controla as tarefas com o pulso firme de um patrão tirânico, permitindo apenas um dia de descanso por semana. Um dia, confia a Aslan a tarefa definitiva de criar os irmãos menores. “Eu não tenho tempo de cuidar de cada um de vocês”, explica.

    O Rio se apresenta como uma fábula cruel sobre a perda da inocência. Subitamente, o pré-adolescente se vê alçado ao cargo de pai postiço e chefe de família, enquanto perde o direito de desfrutar de sua própria infância. Agora, não pode mais brincar com os pequenos, porque precisa vigiá-los e aplicar severamente as punições em caso de mau comportamento. O roteiro parte desta divisão abrupta e artificial da família patriarcal, na qual a mãe se limita a cozinhar e limpar a casa. Enquanto percebem a atitude cruel do pai, os pequenos pensam: por que não podemos, nós também, ser cruéis? Se ele faz o que deseja, por que nós temos que frear os nossos desejos?

    A divagação filosófica a respeito do livre arbítrio ostenta o estilo costumeiramente estetizante do diretor Emir Baigazin. Muitos cinéfilos adoram ou detestam os filmes do cineasta cazaque pelas composições tão belas quanto artificiais, nas quais os personagens posam no ponto exato do enquadramento para extrair a imagem mais bela possível. O caráter posado das imagens, com seus planos fixos e personagens imóveis, transmite um estranhamento que serve como olhar crítico àquela realidade. O diretor jamais adere à vida retratada como algo próximo de uma fábrica ou usina, devido ao trabalho forçado das crianças. Exceto por Aslan, nenhum personagem possui uma construção psicológica complexa. Os irmãos constituem uma massa indistinta, caminhando juntos e eretos nas imagens, como totens.

    O efeito provocado por estas escolhas é ao mesmo tempo admirável e perturbador. Por um lado, O Rio deixa a impressão de folhearmos um álbum de fotografias still, capazes de extrair a luz mais bela e o ponto de vista mais improvável a partir de um casebre paupérrimo nas planícies secas do Cazaquistão. Por outro lado, jamais acessamos a psicologia destes personagens, seus desejos, sua individualidade. Eles constituem funções narrativas, reduzem-se ao papel de irmão mais velho, irmão mais novo, pai e mãe. Nem mesmo a chegada de dois potentes símbolos na história permite a exteriorização dos sentimentos dos garotos. A descoberta do rio, cuja existência tinha sido escondida pelo pai, e a chegada do estrangeiro Kanat, com seus tablets e televisões, provavelmente geram sofrimento, angústia e desejo, mas os semblantes permanecem impassíveis.

    O drama se conclui como um interessante estudo da perversidade transformada em porta de entrada à vida adulta. Para se impor diante dos irmãos, para explorar o rio escondido e driblar a concorrência com o fascinante estrangeiro, Aslan passa a praticar algumas das receitas de manipulação aprendidas com o pai. Como um bom tirano, o garoto aceita ser respeitado pelo medo, já que não pode mais ser genuinamente admirado pelos irmãos mais novos. Ao mesmo tempo, os garotos revelam práticas cada vez mais violentas, algumas cometidas em segredo, outras na intenção clara de provocar o sistema. Partindo de um funcionamento pacífico, a família é tomada pela iminência da guerra.

    A trilogia de Baigazin se encerra numa nota amarga, percebendo na corrupção da pureza um processo inevitável do amadurecimento. É impossível impor a sua subjetividade sem ferir as demais, sugere o roteiro. “O rio é desejado, mas perigoso. Tudo tem dois lados”, explica o pai, sobre os motivos que o levaram a ocultar esta beleza natural, não muito distante de casa, do alcance dos filhos. Aslan aprende esta lição da maneira mais dura: para garantir a sua independência, ele precisa censurar a liberdade alheia.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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