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    Fôlego
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
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    O corpo do ator

    por Bruno Carmelo

    Este filme se abre não com uma imagem, mas com várias. O formato da tela se confunde com o enquadramento da tela de um computador, no qual o diretor Renato Sircilli conversa com o ator Bruno Moreno sobre o filme que ambos estão fazendo. As telas abertas trazem fotos de uma floresta, canções no YouTube, uma troca de mensagens via WhatsApp. Desde o começo, Fôlego apresenta uma sensibilidade contemporânea, não apenas pelo uso da tecnologia atual, mas também pela fragmentação do olhar e velocidade com que se passa de uma dança contemporânea a uma canção de Rihanna, de Miró a um ensaio fotográfico sobre flores remendadas.

    Além disso, a metalinguagem aproxima o espectador da fusão entre ficção e documentário: em diversas cenas, Bruno Moreno interpreta a si mesmo ou reproduz para a câmera momentos que viveu. Enquanto isso, tece comentários sobre a morte da mãe, sobre as lembranças afetivas da infância. Mas tudo o que é dito é verdadeiro? Onde começa a ficção roteirizada e onde acaba a realidade no procedimento? Talvez isso importe pouco. O projeto vale menos pelo que mostra do que pelo modo como mostra. Em outras palavras, o dispositivo é seu conteúdo: este é menos um filme sobre Bruno do que um filme sobre filmes, a arte contemporânea refletindo a criação da arte contemporânea.

    Felizmente, o despojamento da forma nunca implica uma negligência estética, muito pelo contrário. A coreografia dos planos móveis, passando de um rosto a outro durante as compras num supermercado, ou de uma perna a um torso durante uma orgia, é excepcionalmente bem controlada, e expressiva em termos de composição. Sircilli demonstra clareza no que deseja mostrar, extraindo o melhor da iluminação caseira, das falas naturalistas, das roupas, objetos e cenários simples. Ao contrário de muitas obras que exploram o realismo como atos de bravura e orgulho estético, este projeto se faz discreto na criação de um ambiente palpável, fundamental para que se compreenda as motivações do personagem principal.

    Além disso, Fôlego cria uma poesia singela a partir de elementos corriqueiros, especialmente a água retratada pelas ondas do mar, pelas infiltrações, por peças de teatro representando alagamentos e por lembranças envolvendo uma praia. Sircilli ainda encontra espaço para questionar a ética da arte diante da dor dos outros: seria justo pedir a Bruno que buscasse fotos da mãe recém-falecida, apenas para inclui-las no projeto? Qual seria a prioridade: o respeito à intimidade do luto, ou a necessidade de criar referenciais imagéticos? Os melhores momentos se encontram na dissociação entre som e imagem, quando a narração em off sobre a infância se sobrepõe a imagens da vida adulta, no tempo presente. A voz sem referente e a evocação de um passado saudoso conferem uma emoção respeitosa e humana ao resultado.

    Talvez a narrativa se enfraqueça um pouco quando troca a água pelo fogo, e a performance pelo ritual. O naturalismo tão despojado da primeira metade cede espaço a algumas cenas mais artificiais (o comunicado à trupe sobre o abandono da peça), e a momentos destinados a “fazer verdade”, a comprovar uma experiência corporal do ator que não poderia ser simulada. Entram em cena orelhas sendo perfuradas em plano próximo, corpos nus sofrendo com o frio da floresta e o calor da fogueira, uma boca aberta sorvendo água suja.

    É curioso como tantas produções contemporâneas não se contentam mais em adotar uma estética naturalista, fazendo questão de demonstrar ao espectador que o corpo realmente sofreu ou gozou junto do personagem. Algo nesta forma de arte bruta recusa o caráter representativo da imagem, como se “a ficção não desse conta”, como afirma o cineasta em trocas de mensagem com o ator. O resultado se mistura com o processo, o personagem se funde com o ator e, consequentemente, o criador se torna criatura. Tanto Sircilli quanto Moreno constituem personagens de si próprios, oferecendo seus corpos, suas palavras e seus gostos ao espectador, sem pudores. O sacrifício artístico e a humildade da autoexposição de fraquezas não deixam de parecer, ironicamente, um tanto pretensiosos.

    Mesmo assim, Fôlego consegue propor belas reflexões sobre a vida e a morte, além de comparações entre o luto na cidade e o expurgo na natureza, através de recursos que dificilmente seriam possíveis no cinema de uma década atrás. Será interessante descobrir como o projeto envelhece, ou seja, de que modo será enxergado pelos espectadores da próxima geração, quando talvez o Facebook, o YouTube e a intensa fragmentação do olhar tenham se transformado em outras formas de experiência sensorial.

    Filme visto no 13º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2018.

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