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    Querência
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Querência

    A solidão do sertanejo

    por Bruno Carmelo

    O mundo dos rodeios nunca foi tão triste quanto neste drama brasileiro. Em QuerênciaHelvécio Marins Jr. retira do universo sertanejo tanto a sua nostalgia pela terra e pelas raízes - o protagonista, o Marcelo (Marcelo Di Souza), não possui qualquer apego particular ao trabalho nem ao campo - quanto o consumismo festeiro do dito “sertanejo universitário” (mulheres, carros, cerveja etc.). O caubói realiza suas tarefas diárias com uma postura aborrecida porque, pouco tempo atrás, assaltantes entraram na fazenda onde trabalha e roubaram dezenas de cabeças de gado.

    Através do olhar desglamourizado, o cineasta constrói belos planos noturnos da atividade rural. As longas cenas se abrem ao acaso, à movimentação descontrolada dos animais e dos humanos em torno deles - em outras palavras, a câmera se ajusta ao real, e não o contrário. Os planos abertos, sem cortes, permitem ver que são de fato os atores desempenhando a função de cuidar dos bois, das galinhas, da fazenda. A verossimilhança se impregna a uma atmosfera semidocumental, reforçada pelo uso de atores não profissionais, pela ausência de trilha extradiegética e por um impressionante distanciamento dos personagens e fatos.

    Este distanciamento, aliás, constitui um dos fatores mais singulares do projeto. Por um lado, as imagens abertas tratam de inserir os personagens num cenário gigante, valorizando os espaços e apequenando os humanos diante da natureza. Por outro lado, transmitem uma impressão de frieza, impessoalidade, por admirar Marcelo e seus colegas sem qualquer intervenção, sem um olhar subjetivo nem propriamente empático. Os vaqueiros são espiados de longe, com os rostos escurecidos pela sombra do chapéu e pelo forte contraluz das lâmpadas. Os close-ups do ator principal são raros.

    Tal escolha permite ao diretor fornecer planos bem construídos, dignos dos quadros de Edward Hopper. Assim como em Hopper, contudo, as figuras humanas parecem estar posando, um tanto anônimas, intercambiáveis, sem histórias específicas. O contraste entre o realismo e o aspecto artificial da mise en scène se sobressai nos diálogos ocasionais, que muitas vezes tratam de explicar ao espectador informações de que ambos os personagens dispõem: “Marcelo, agora vai ser a sua última semana aqui na fazenda”, afirma um personagem, enquanto outro aconselha: “Você não deveria ter vindo trabalhar. Está deprimido”. O caráter informativo do texto se acentua pela dificuldade dos atores em trabalhar organicamente as falas.

    “Essa história dá um poema”, afirma a certa altura um colega de Marcelo, em referência a uma anedota pessoal. A frase caberia ao filme inteiro. Querência busca a poesia do silêncio, da ausência de conflito, do cotidiano do homem em meio à natureza - aliás, a cena inicial, com fragmentos de corpos humanos em meio aos bois, se revela particularmente bela. O espaço, o tempo e os personagens são verossímeis, porém uma vez dispostos os peões no tabuleiro, a direção parece não saber muito bem como movê-los. Ao menos, paira um olhar esteticamente coeso sobre este cenário, sinal de um cineasta seguro de suas decisões.

    O filme ameaça produzir algumas faíscas interessantes ao mencionar o impeachment de Dilma Rousseff e criar uma microssociedade sem famílias, sem casamentos, sem crianças. Mesmo a religião faz uma incursão discretíssima na trama. Marcelo é um homem abandonado, e neste abandono de laços afetivos se insere a crônica de um Brasil profundo que se sente órfão e sem voz. A percepção da derrota de Marcelo em relação ao gado roubado ecoa aquela do país inteiro, se sentindo usurpado, porém sem ter a quem recorrer. No entanto, esta analogia não se aprofunda. O principal deleite do filme reside na estética singela e precisa.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

     

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