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    Família Submersa
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Família Submersa

    A vida durante o luto

    por Bruno Carmelo

    A perda de um ente querido costuma ser representada no cinema clássico pela imagem da ausência: o protagonista se encontra sozinho dentro de casa, solitário à mesa de jantar, em silêncio dentro da cozinha, espremido num lado da cama de casal. É comum o trabalho com a dilatação do tempo, a sensação de pesar, de gravidade. Família Submersa, coprodução entre Argentina, Brasil, Alemanha e Noruega, surpreende por adotar um caminho oposto: logo após perder sua irmã, a vida de Marcela (Mercedes Morán) se transforma num caos.

    Isso porque a rotina não se interrompe por causa da morte: o filho adolescente ainda precisa de ajuda na lição de casa, a máquina de lavar necessita de conserto, o marido não pode cancelar a viagem de trabalho, a filha atravessa uma ruptura amorosa. Marcela não pode ser apenas a irmã da falecida Rina. Ela precisa desempenhar uma série de tarefas diárias, incluindo esvaziar o apartamento da irmã e lidar com os objetos deixados por ela. Essa é uma característica muito bem retratada pela diretora Maria Alché: a dor de não poder parar, respirar, não poder se consagrar ao processo de luto antes de passar adiante. A vida dos outros continua, atropelando Marcela.

    Ao invés de levar a protagonista à sociedade, onde se confrontaria com diferentes estímulos, o roteiro traz a sociedade para dentro da casa: filhos, mecânicos, amigos, namorados e funcionários de mudança invadem esse espaço tão íntimo, violando seu direito à privacidade. A câmera permanece discretamente móvel para captar o entra e sai dos cômodos, o trânsito pelos corredores, enquanto os objetos se acumulam nas paredes e móveis, e os ruídos cotidianos invadem os diálogos. A diretora constrói uma bela estética da saturação em conjunto com a direção de fotografia, que permite tanto esconder os personagens em cantos escuros dos cômodos quanto cegá-los pelos raios de sol. O ambiente é inóspito, opressor - algo curioso para um lar. Ao mesmo tempo, a personagem não consegue sair dele.

    Maria Alché, atriz de A Menina Santa, certamente se inspirou muito na estética da cineasta Lucrecia Martel, que a dirigiu, para seu primeiro longa-metragem. É impressionante como o naturalismo psicológico de Martel, especialmente em O Pântano, se tornou uma referência central para o cinema latino-americano dos últimos vinte anos. Alché demonstra o mesmo uso inteligente dos sons e espaços fora do enquadramento, a mesma câmera-testemunha passeando pelos corpos e pelos rostos, a impressão de decadência da classe média. O sexo, a morte, a amizade e as rivalidades acontecem dentro de um pequeno núcleo, no espaço asfixiante de um apartamento.

    Ao mesmo tempo, destaca-se o potente trabalho com simbologias: enquanto o mundo se transforma sem parar à volta de Marcela, a vida dela se encontra estagnada, algo visto pelas imagens de cobras trocando de pele, explicações sobre mudanças climáticas em livros de geografia, reações químicas irreversíveis. O peso da situação é equilibrado por momentos lúdicos de interação nos quais os personagens cantam, dançam, interpretam. A cena em que o pai improvisa uma canção refletindo sua insignificância dentro da casa é particularmente impressionante. Rumo ao final, Alché se liberta da estética marteliana para investir em algo próximo do realismo fantástico, ou mesmo do surrealismo. A narrativa se desprende do protagonismo da mulher em luto para se focar em outras figuras, como o amigo Nacho (Esteban Bigliardi) e o marido (Marcelo Subiotto).

    Este segmento pode tornar o conjunto amplo demais, e menos coeso. No entanto, demonstra louvável ambição por criatividade e ousadia formal. Família Submersa perde força à medida que se distancia da atuação magnética de Moran e do espaço da casa. Mesmo assim, faz prova de um vigor impressionante, como convém a uma cineasta estreante. Alché demonstra controle dos enquadramentos, ótimo trato com o elenco e a coragem de dissociar som e imagem, a exemplo da cena em que se escuta uma música ao piano, embora ninguém esteja tocando o instrumento. Aos poucos, a diretora liberta-se das referências e anuncia uma voz singular e promissora no cinema argentino.

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