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    Salto no Vazio
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Salto no Vazio

    Jornada íntima

    por Bruno Carmelo

    Este projeto se abre de maneira tão despojada quanto ambiciosa: por um lado, os vídeos de viagem da dupla Cavi BorgesPatrícia Niedermeier possuem intenção artística, mas não aparentam ter sido concebidos para um longa-metragem; por outro lado, os letreiros anunciam o início de uma trilogia, enquanto os vídeos caseiros são costurados com reflexões filosóficas sobre o amor, o tempo e o espaço, além da experiência da guerra e do trabalho do ator. Os cineastas buscam se apropriar de materiais preexistentes e enriquecê-los através da terna narração em off e dos recursos de montagem. Como estrutura e discurso, Salto no Vazio parece ter nascido na sala de edição.

    Podemos falar, portanto, num filme conceitual, além de um projeto autoral no sentido estrito do termo: os criadores são também roteiristas e atores, controlando a cadeia criativa do início ao fim. Eles oferecem seus corpos, suas histórias de viagens, seus longos beijos em planos próximos. Existe uma evidente sinceridade nesta autoexposição não glamorizada, com direito a momentos espontâneos e grande liberdade no agenciamento de ideias. Cada uma das belas coreografias da atriz e dançarina é executada num espaço público, ao olhar de todos. A arte torna-se ferramenta de ocupação do espaço público, do mesmo modo que o projeto de baixo orçamento ocupa um circuito cinematográfico afeito a grandes produções.

    Assim, o filme constitui um ato político em si. Privilegiando o exercício da forma ao refinamento das imagens, ele permite brincadeiras, investindo no corpo como performance, a exemplo da excelente cena em que as sombras da dançarina se projetam sobre as ondas do lago. Salto no Vazio resgata o encantamento típico aos primórdios do cinema, quando os corpos eram retratados inteiros, em planos de conjunto, e a magia era produzida in loco, através de ferramentas analógicas de linguagem – vide a manipulação dos espaços em uma escultura em Berlim, ou a dança com as folhas num jardim parisiense. A ausência de diálogos diretos entre o casal – as falas são sustentadas pela correspondência epistolar em off – contribui ao aspecto fantasmático.

    A narrativa adquire contornos particulares quando passa a discursar sobre a guerra na Síria. Entram em cena fotografias belíssimas, profissionais, produzidas pelo personagem fictício do fotógrafo, em oposição às imagens assumidamente amadoras da viagem de sua amada ao redor do mundo. O encontro das duas texturas provoca um ruído notável: por contraste, os registros do fotógrafo soam ainda mais polidos, enquanto as gravações da dançarina tornam-se mais deficientes. O discurso complexo sobre os males da guerra, com pais perdendo filhos no meio de bombas, não dialoga facilmente com os passeios da protagonista, em suas viagens leves por grandes cidades europeias. O turismo e a guerra, a ficção e o real, o luxo e a precariedade incomodam ao serem colocados em pé de igualdade, como duas experiências comparáveis.

    Salto no Vazio também pode provocar certa sensação de déjà vu – por mais belas que sejam, as sobreposições de mapas aos personagens e a leitura de cartas e fotos não fornecem estímulos realmente novos ou provocadores, por trabalharem com os símbolos mais clássicos das viagens e das trocas amorosas. Mesmo assim, a dupla de diretores oferece uma interessante cartografia amorosa, um filme pessoal no sentido mais íntimo do termo, além de uma investigação sobre o valor afetivo da memória. O projeto consegue, como poucos, explorar o registro caseiro como forma e conteúdo, sendo muito bem-vindo dentro da frieza comercial do nosso grande circuito de cinema.

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