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    Luciérnagas
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Luciérnagas

    O homem de lugar nenhum

    por Bruno Carmelo

    A porta de entrada para esta coprodução entre México, Grécia, Estados Unidos e República Dominicana é sua geografia fluida, beirando a fantasia: o jovem imigrante Ramin (Arash Marandi) se encontra no México, onde o chamam de “Aladdin”. Quando afirma vir do Irã, um colega responde: “É como o Iraque, né?”. Outra garota, ao descobrir as origens do rapaz, lhe mostra uma foto dos familiares libaneses para sugerir uma semelhança. Ramin não representa o Irã, mas um imaginário vasto do Oriente Médio, um ideal de fuga comum a todos os personagens. Ninguém está satisfeito na cidade de Vera Cruz, cujo caráter portuário favorece os sonhos de viagens pelo mundo. Ramin pensa em chegar à Grécia ou Turquia, tanto faz. Guillermo (Luis Alberti) sonha com Los Angeles. Ernesto (Eduardo Mendizábal) acaba de chegar do Texas, para onde pretende voltar.

    O protagonista possui outros motivos para se sentir estrangeiro: ele não fala espanhol, não possui conhecidos no México, e se sente diferente por ser gay, condição que lhe rendeu chibatadas e prisão em seu país de origem. O material seria ideal para um melodrama sobre a dor dos amores perdidos e da busca de si próprio, no entanto a cineasta Bani Khoshnoudi conduz a narrativa com impressionante sobriedade. Ela jamais fornece descrições detalhadas sobre o calvário no Teerã, nem sobre a dificuldade em deixar o namorado no país de origem. Muitos elementos são apenas sugeridos, cabendo ao espectador preencher as lacunas. Ao conhecer um colega de sexualidade ambígua e uma garota gentil no hotel onde está hospedado, Ramin parece se encaminhar para a óbvia descoberta do amor romântico e da amizade reparadora. No entanto, estes caminhos fáceis são evitados pela narrativa.

    A diretora deposita grande confiança no trabalho de seus atores principais, possivelmente escolhidos pela expressividade dos olhos: Arash Marandi possui um olhar penetrante, que se transforma gradualmente da curiosidade à resignação, da tristeza ao alívio ao longo de uma mesma frase. Luis Alberti carrega toda a brutalidade do mundo nos olhos e nas palavras, entoadas em tom quase animalesco, equilibrados com o olhar doce e o tom moderado de Edwarda Gurrola, cuja personagem atravessa suas próprias mazelas amorosas. O trabalho de corpo de Marandi, em especial, impressiona pela mistura entre rigidez (o olhar baixo, as costas meio curvadas) com o despojamento de quem não possui mais nada a perder. Ramin ao mesmo tempo aprecia aquela cidade, pelo distanciamento do trauma no Teerã, e a detesta, por não ser um destino de sua escolha, e por não ter nada ali que o prenda. Quando questionado para onde deseja fugir com tanta urgência, o jovem às vezes responde: “Não sei”, numa sinceridade absurda e comovente, graças ao trabalho do ator.

    As imagens também impressionam. Desde a cena inicial, quando um plantio enche a tela em scope com belas luzes, até o aguardado carnaval, catarse coletiva onde Ramin pode finalmente ser uma pessoa como qualquer outra, Khoshnoudi trabalha com enquadramentos precisos e movimentos de câmera quase imperceptíveis para registrar o personagem perdido na paisagem ou apático dentro do quarto. A fotografia também faz ótimo uso tanto da luz natural (a cena do caminhão, a crise à beira-mar) quanto das luzes de um beco escuro onde rapazes se encontram. A noção de clima é muito bem trabalhada por este filme de fuga retratada pela imobilidade, por personagens desconfortáveis que jamais conseguem sair. Por esta razão Ernesto, o mexicano vindo do Texas, surge como figura ao mesmo tempo detestável e irresistível aos olhos de Leti: ele conseguiu escapar a esta prisão a céu aberto, exibindo aos locais o seu sucesso na empreitada em que os demais falharam.

    Luciérnagas se encerra como um belo drama sobre o não-pertencimento, utilizando a metáfora geográfica para falar de orientação sexual (ou seria o contrário?). Talvez o roteiro se beneficiasse de alguma cena de catarse em que tantos sentimentos reprimidos pudessem de fato ser canalizados, porém a direção prefere manter uma mistura de desespero e melancolia, de ternura e brutalidade na relação entre os personagens e seus próprios corpos e identidades. “Nossas cicatrizes contam a nossa história”, afirma Guillermo ao exibir, orgulhoso, as marcas de tiros na pele. O jovem ainda pede a Ramin que toque as cicatrizes, num dos momentos mais eróticos da trama. É disso que se trata, afinal: se exibir ou se esconder, ter orgulho das feridas ou conviver com as mesmas silenciosamente. A impossibilidade real de fuga corresponde não apenas ao México, mas à própria identidade de Ramin, precisando aceitar a si próprio para seguir em frente. Neste cenário, o horizonte infinito do oceano representa ao mesmo tempo uma saída e uma linha final.

    Filme visto no 29º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em setembro de 2019.

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