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    Palavras contra a pedofilia

    por Bruno Carmelo

    A maioria dos dramas a respeito da pedofilia dentro da Igreja Católica se concentra na descoberta dos casos em suas variadas fases: as primeiras suspeitas, a confirmação, a revolta, a dor dos familiares, o descaso dos religiosos diante das acusações etc. By the Grace of God surpreende por dar um passo além, ou seja, começar a sua trama quando todos estes passos já aconteceram. Na cena inicial, Alexandre Guérin (Melvil Poupaud) redige uma carta na qual relata os abusos sofridos por um padre na infância. Na cena seguinte, a arquidiocese propõe um encontro com o acusador para lidar com o caso através do perdão.

    Ora, dada a velocidade com que se ataca o conflito principal, o que sobra aos demais 120 minutos de filme? O diretor François Ozon destrincha a longa trajetória burocrática e administrativa necessária para condenar um padre pedófilo. Ao invés de se concentrar nos sentimentos de uma experiência recente, prefere estudar como eles envelhecem, de que maneira um trauma do tipo influencia a vida adulta das vítimas e passa a ser minimizado por familiares e autoridades. Afinal, “foi tanto tempo atrás, por que voltar nisso?”, reclamam alguns personagens. Baseado na história real ocorrida em Lyon sobre o padre que abusou de mais de 70 crianças, o cineasta adota uma postura linear e convencional, tomando o tempo necessário para revelar o encontro de cada nova vítima, os primeiros contatos com arcebispos e advogados, a criação de uma associação, o envolvimento da mídia.

    O versátil Ozon, capaz criar de uma estética leve e kitsch (8 Mulheres, Sitcom) ou inventiva e labiríntica (O Amante Duplo, Dentro da Casa) desta vez prefere um registro solene. Ele utiliza planos e contraplanos, enquadramentos fixos, pouca música ou ruídos. O que move a trama é a palavra escrita ou oral: fala-se muito em By the Grace of God, e escreve-se mais ainda – estas mensagens sendo narradas em off pelos personagens. Por um lado, a atenção minuciosa aos trâmites confere um caráter multifacetado ao roteiro: esta não é uma história contra a Igreja Católica, nem mesmo contra os padres em geral, apenas contra os casos de pedofilia abafados pelas altas esferas do poder eclesiástico.

    O filme se esforça em mostrar as diferentes reações das vítimas: algumas continuam religiosas, outras abandonaram a crença; umas mantêm relacionamentos estáveis, outras desenvolveram problemas afetivos graves; umas são heterossexuais convictas, outras vivem sua homossexualidade. Os familiares também variam do apoio incondicional ao ceticismo. A estrutura torna-se ainda mais ousada por mudar de protagonista ao longo da trama. Partindo de um segmento inteiramente dedicado a Alexandre, volta a sua atenção a François Debord (Denis Ménochet) e conclui com outro personagem principal, Emmanuel Thomassin (Swann Arlaud). Mesmo sem a divisão efetiva em três partes, o roteiro ousa jogar foco em algum personagem para, em seguida, deixá-lo em segundo plano.

    Apesar de tamanho investimento humanitário e representativo, o filme não deixa de soar um tanto aborrecido, quase antiquado; primeiro, por sua verborragia (não por acaso, a associação das vítimas se chama “Palavra Liberada”), segundo, pela composição de imagens em estilo acadêmico e impessoal (logo para um diretor conhecido pela ironia!), e terceiro, pela incapacidade de desenvolver qualquer outro tema além da pedofilia (as esposas servem como meras comentadoras dos casos dos maridos, os filhos não possuem personalidade alguma). Abordando um episódio sensível da recente história francesa, o diretor optou pelo caminho mais comedido possível, tornando-se certamente muito respeitoso, mas perdendo em criatividade.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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