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    O Clube dos Canibais
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    O Clube dos Canibais

    Elite voraz

    por Sarah Lyra

    O Clube dos Canibais é um filme ousado em sua temática, embora apresente dificuldades em adotar elementos que executem sua proposta com personalidade. Há uma bem-vinda estranheza pairando em todo o longa, mas, diferente do alto nível de consciência e controle no tom e na linguagem de cineastas como Yorgos Lanthimos e David Lynch, essa estranheza se mostra menos intencional do que o resultado final tenta sugerir. Em certos momentos, a frieza e apatia com que o texto é verbalizado pelos atores, supostamente calculada, se confunde a uma inabilidade desses mesmos profissionais em se habituar às falas. Possivelmente por conta do lado trash na produção comandada por Guto Parente, esse problema soa como uma bizarrice que acaba agregando à narrativa — embora a falta de intencionalidade seja visível, principalmente nas falas de Gilda (Ana Luiza Rios) —, cujo impulso inicial é acompanhar os desdobramentos de práticas canibalescas da elite cearense, usadas como alegoria para compor uma sátira social.

    Talvez a maior inconsistência do longa esteja no fato de que, mesmo se tratando de uma sátira, o lado caricatural não seja assumido em sua plenitude. Na cena em que Gilda fala de como adora o primeiro mundo, a crítica à mensagem fica mais implícita do que escancarada. O monólogo de Borges (Pedro Domingues) durante um brinde do clube dos canibais, por outro lado, não apenas se enquadra perfeitamente na proposta, como se mostra acertado pelo tom teatral usado por Domingues, que rouba a cena nas poucas vezes em que aparece. Conceder um tempo considerável de tela para um discurso em que o personagem fala de como o Brasil passa por um estado de degradação dos valores de família, fé e trabalho, em contraste com as imagens do ritual mostrado momentos antes, deixa clara a intenção de Parente em retratar Borges, que além de tudo é deputado, como um representante da elite hipócrita — o que, no momento atual, se converteu numa elite bolsonarista.

    Diante disso, nada mais apropriado do que colocar esse mesmo personagem rico, conservador e defensor da família tradicional brasileira como um homem disposto a tudo para preservar o segredo que consiste, essencialmente, no fato de ele ser gay. Uma das grandes cenas de O Clube dos Canibais, inclusive, tem sua força no cinismo absurdo de Borges durante o confronto com Gilda. A maneira como ele finge não fazer ideia ao que ela se refere é hilária e digna de aplausos pela maestria com que Domingues conduz o diálogo.

    A construção dos valores de Otávio (Tavinho Teixeira) é igualmente reveladora. Note como o personagem reage ao plano de Gilda e destaca não ser um assassino, o que, na lógica dele, difere completamente de sua prática em relação aos trabalhadores da mansão em que vive com a esposa. Só é assassinato de fato quando se trata de um deles: homens distintos, merecedores da posição privilegiada, devotos dos mais nobres e elevados valores universais. No ritual, por sua vez, há a ideia de que, na verdade, se trata de uma limpeza urbana, que livra o país de delinquentes preguiçosos, da “escória social”. Já as instruções de “mete bala”, “taque chumbo” e “atira, depois pergunta”, passadas por Otávio, são extremamente sintomáticas das políticas de segurança pública implementadas por um grupo atualmente no poder, representado por figuras como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

    Mesmo com dificuldades e inconsistências em sua execução, O Clube dos Canibais garante seu espaço como um dos filmes brasileiros mais relevantes deste ano, especialmente pela disponibilidade em fazer um comentário sobre hierarquia social dentro de um gênero cinematográfico que também sofre com o preconceito de um elite. Além disso, que outro gênero melhor ilustraria os horrores do momento atual vivido pelos brasileiros?

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