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    Cross My Heart
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Cross My Heart

    A fábula dos pequenos guerrilheiros

    por Bruno Carmelo

    A adolescente Manon (Milya Corbeil-Gauvreau) e seu irmãozinho Mimi (Anthony Bouchard) estão prestes a ser entregues a uma família adotiva. No entanto, eles não são órfãos. A dupla tem um pai e uma mãe, porém aquele é vítima de câncer em fase terminal, e esta se afunda numa depressão nervosa devido à doença do marido. Assim, as crianças vivem sem cuidados, até descobrirem a decisão dos pais biológicos sobre a entrega à adoção. Revoltados, planejam uma fuga.

    O drama canadense parte de uma crise na configuração familiar para debater os problemas do país nos anos 1970, época em que a história se desenvolve. Enquanto os radicais do FLQ (Fundo de Libertação do Québec) efetuam sequestros e atos de desobediência civil, a adolescente planeja, ao seu modo, uma pequena revolução. Inspirada nos casos relatados pelos telejornais, executa o sequestro de uma vizinha idosa capaz de cuidar deles, mudando-se com o irmão, a refém e dois primos para uma casa abandonada na floresta. Na falta de uma família efetiva, Manon cria a sua própria, servindo de mãe postiça ao irmão mais novo, e tendo na figura do primo mais velho um pai postiço para Mimi. Logo, eles passam a reproduzir regras patriarcais – Manon cozinha e cuida da casa, o primo vai à caça.

    Cross My Heart aborda assuntos complexos em tom leve, lúdico. Ao acompanhar o ponto de vista desta guerrilha mirim, o cineasta Luc Picard perdoa qualquer ato em nome das boas intenções e da imaturidade do grupo. As atitudes das crianças se assemelham a brincadeiras, uma maneira de flertar com a ideia da morte e da emancipação. Este é um jogo político, uma passagem à fase adulta por meio do simulacro da revolução. No entanto, para evitar armas e sangue, o diretor facilita o caminho de suas crianças. Nunca existem empecilhos reais no trajeto, o dinheiro não é um problema, o deslocamento com uma senhora sequestrada em transporte público revela-se bastante simples.

    Estamos claramente no universo da fábula. A fotografia reforça esta escolha ao substituir os tons escuros e opressores da casa familiar pela natureza aberta, bela e convidativa. A amplitude dos espaços e a calma da planície vazia são retratadas como sinônimos de liberdade. O próprio título original faz alusão ao caráter alegórico do projeto: Les Rois Mongols, ou “os reis mongóis”, constitui ao mesmo tempo uma brincadeira infantil dos personagens e uma figura de autoridade real, porém distante e desconhecida, como a política de seu próprio país. Em sua fuga, Manon brinca de ser grande, ser importante, ser necessária – exatamente o contrário do que acontecia na casa dos pais.

    No elenco, Picard faz questão de equilibrar as facilidades narrativas com uma atuação sóbria de Milya Corbeil-Gauvreau no papel principal. A garota é capaz de transmitir liderança numa cena, mas transparecer insegurança no momento seguinte, com igual desenvoltura. Os debates entre os adultos oferecem uma imagem amarga de como a política invade os lares – vide as belas discussões entre o pai conservador, contrário ao FLQ, e o filho revolucionário, defensor das práticas do grupo.

    Apesar de uma leitura política tão interessante, é uma pena que o roteiro apele demais para a ingenuidade do pequeno Mimi na intenção de despertar risadas, ou para atitudes francamente inverossímeis de Rose (Clare Coulter), a idosa sequestrada. O filme nunca sabe ao certo o que fazer com esta personagem, sem dúvida o elo mais fraco da narrativa. Mesmo assim, Cross My Heart se conclui como um corajoso rito de passagem à fase adulta capaz de refletir, ao mesmo tempo, sobre a história política canadense.

    Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.

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