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    Sobre Pais e Filhos
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Sobre Pais e Filhos

    Uma família de terroristas

    por Bruno Carmelo

    Como nascem os extremistas religiosos? Que educação uma criança precisa ter para aderir ao jihadismo e dedicar a sua vida à guerra? De que maneira a cultura da violência e do sacrifício é transmitida entre gerações? Munido por estes questionamentos, o diretor sírio Talal Derki, de vocação pacifista, ganha a confiança de uma família de terroristas, que aceita a presença da câmera filmando o seu dia a dia. Para isso, o cineasta afirma ter simpatia pelo movimento, pretendendo disseminar o islamismo radical mundo afora. A empreitada implica num risco de morte para o diretor.

    As imagens são impressionantes. Sobre Pais e Filhos apresenta um mundo exclusivamente masculino no qual a violência e a proximidade com a morte tornam-se naturais desde a pequena infância. Os garotos cortam um pássaro em dois pelo prazer de fazê-lo, criam bombas caseiras quando estão entediados, efetuam treinamentos de guerra envolvendo armas pesadas. Quando um deles se comporta mal, o pai ameaça: “E se eu arrancar a sua pele com uma faca?”. Na rádio, as músicas cantam a vitória dos jihadistas contra o Hezbollah e outros adversários, com versos louvando a quantidade de sangue derramado.

    Nenhum destes elementos é carregado de alguma perversidade, apenas um profundo senso de honra e fé. Os pais são carinhosos com os filhos, e os pequenos veneram os adultos. Em outras palavras, o diretor retrata um aspecto cultural, e não moral. Não estamos falando de pessoas boas ou más, e sim de homens que acreditam profundamente numa ideologia, dedicando as suas vidas para isso – como também fazem os fanáticos de quaisquer outras religiões, aliás. A luta armada, para eles, representa ao mesmo tempo uma vocação, uma profissão, um lazer e uma recompensa em si. Alá é citado a todo momento, para justificar o as vitórias e as derrotas, o nascimento e os assassinatos. Estas pessoas se expõem à morte diariamente, caminhando em territórios com minas, disparando armas e preparando bombas.

    Derki também se aproxima perigosamente das minas terrestres, entrega armas aos amigos durante um tiroteio, filma a perna amputada de um dos homens. O diretor busca uma espécie de cinema-verdade, no qual os fatos precisam ser apreendidos – e não representados – para constituírem um documento válido. Estas cenas são construídas com impecável noção de ritmo e enquadramento, sem a necessidade de explicações didáticas de qualquer ordem. As imagens falam por si mesmas. Ao mesmo tempo, impressiona a naturalidade das pessoas diante desta câmera a poucos metros de distância. Depois de certo tempo, nenhum deles parece atuar para o cineasta, apresentando um despojamento difícil de obter no cinema documental de vertente sociológica.

    Por mais chocante e esclarecedor que seja, o projeto enfrenta um problema ético grave: ele se constrói em cima de uma mentira em relação às pessoas filmadas. Derki se passa por um apoiador dos extremistas, quando na verdade pretende denunciar suas práticas perigosas. Ele engana aquelas pessoas, utiliza a imagem das mesmas para fornecer um discurso contrário àqueles que confiaram nele. Esta iniciativa seria comemorada dentro do jornalismo investigativo, para o qual interessa sobretudo a obtenção dos fatos, porém incomoda muito dentro de uma obra de arte.

    Sobre Pais e Filhos sequer poderia ser mostrado à própria família filmada, que poderia revidar diante da traição. Além disso, ao colaborar com a entrega de armas durante uma batalha, o cineasta não deixa de se tornar cúmplice destes atos. Para obter imagens tão impactantes, Derki abriu mão de preceitos éticos fundamentais à criação artística. Por fim, o documentário deixa um gosto amargo. Trata-se de uma reportagem excepcional, fortíssima e rara, porém uma forma de cinema desonesta.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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