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    Piedade
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Piedade

    Que bom te ver sofrendo

    por Bruno Carmelo

    A situação é universal: nós encontramos um amigo ou conhecido, que acaba de perder um ente querido, ou tem uma pessoa próxima enfrentando uma doença em estágio avançado. Como confortá-lo? Quais são as palavras corretas, de que maneira agir? Dizendo “força”, “coragem”, proferindo algumas lições religiosas? Abraçando, mandando presentes, cartões? O diretor Babis Makridis consegue transformar esta situação de extremo desconforto, para todas as partes envolvidas, numa estranha comédia sobre a nossa dificuldade de lidar com a morte.

    O primeiro elemento de subversão se encontra na figura do protagonista (Yannis Drakopoulos), um advogado criminalista acostumado a lidar diariamente com o desespero alheio. Quando a sua esposa entra em coma, ele sofre de verdade, porém aproveita os olhares piedosos das pessoas, o tratamento preferencial na lavanderia que conhece sua situação familiar, os bolos entregues diariamente pela vizinha. Este homem sem nome deseja ter a esposa de volta, mas não quer perder o tratamento diferenciado desta sociedade artificialmente gentil. Afinal, “todo mundo precisa de um abraço”, como explica um amigo do protagonista.

    A segunda subversão se encontra na estética proposta pelo diretor, que consiste em tratar com uma frieza implacável elementos que seriam patéticos na mão de outros cineastas. O advogado começa a manipular e chantagear o seu entorno de maneira cada vez mais descarada, mas os planos fixos, a ausência de trilha sonora, as cores e luzes brancas conferem um ar de seriedade aos procedimentos tragicômicos. Os corpos dos atores são um tanto rígidos e as expressões ganham um ar embrutecido, algo estranho para um filme sobre choros e mortes. Existe uma atmosfera teatral na maneira como o personagem enfrenta a sua dor: a consternação interna não se externaliza no corpo. Ele continua trabalhando, com um desempenho cada vez melhor.

    Boa parte da comicidade nasce deste embate improvável entre a etiqueta do luto e a chantagem emocional do advogado, que extrai um prazer quase sexual de sua situação de vítima. Drakopoulos está excelente no papel principal, conseguindo entregar com uma espantosa naturalidade momentos insanos como a canção escrita de próprio punho caso a esposa morra, ou a bronca dada no filho por tocar uma música alegre ao piano num momento de tristeza. A trilha sonora, aliás, funciona como excelente motor de comicidade, por alternar entre o silêncio profundo e a ópera alta e exagerada, em contraposição com o semblante impassível do ator. Makridis brinca com o jogo de tons e intensidades: a música gritante sobreposta a imagens frias, ou o silêncio profundo em instantes de catarse emocional.

    Sempre há algo fora do lugar, algum recurso inesperado de montagem, iluminação ou enquadramento. O cineasta consegue entregar uma raríssima comédia cujo humor se encontra inteiramente na linguagem cinematográfica, ao invés do roteiro – o mesmo texto, em outras mãos, poderia se transformar num melodrama convencional. O filme é conduzido com um cinismo atroz destinado a questionar as nossas convenções diante da dor alheia. Por mais amoral (ou imoral?) que seja, o filme serve para provocar, através do desconforto, uma reflexão sobre um conteúdo de ordem afetiva. O fato de tratar a morte de modo cerebral faz de Piedade um projeto provocador e profundamente original.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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