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    Tyrel
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Tyrel

    Um estranho numa terra estranha

    por João Vítor Figueira

    Um jovem afro-americano visita um grupo de brancos em uma casa isolada nos Estados Unidos e as coisas não terminam bem. A descrição poderia dar conta de um breve resumo de Corra!, terror-satírico-sensação repleto de simbolismos sobre a falácia de uma América pós-racial, mas também serve para definir a sinopse deste filme dirigido e roteirizado pelo chileno Sebastián Silva. Em Tyrel, a experiência do racismo não ganha contornos tão extremos quanto no premiado filme de Jordan Peele. Não há banho de sangue, não há a complexa representação de processos históricos de exclusão por meio de metáforas visuais. Mas o mesmo tipo de tensão interpassa as relações sociais apresentadas no longa-metragem com um acréscimo: o filme também examina um tipo bem específico de sociabilidade masculina e a noção de pertencimento.

    Depois de atuações grandes atuações em Straight Outta Compton - A História do N.W.A. e Mudbound - Lágrimas Sobre o MississippiJason Mitchell entrega mais uma boa performance como protagonista deste drama. Ele interpreta Tyler, um rapaz que aceita passar um final de semana com os amigos de seu melhor amigo Johnny (Christopher Abbott) que ele ainda não conhece. O encontro se dá em uma cabana no meio da floresta no estado de Nova York onde será comemorado o aniversário de Pete, um sujeito de personalidade expansiva que não por acaso é interpretado por Caleb Landry Jones, que vive em Corra! um inconveniente (e perturbador) personagem similar.

    O roteiro de Silva é inteligente em instigar uma sensação de apreensão contínua que se constrói de maneira natural na forma em que Tyler — erroneamente chamado de Tyrel por um um branco que não estava prestando muita atenção no "intruso" — lida com aquela situação. A opção, entretanto, pode pode ser frustrante para o espectador que é levado a crer que o longa-metragem reserva uma conclusão mais catártica para aquele ciclo de animosidades,  algo que jamais acontece. A ideia aqui pe criar um panorama de situações sociais fundamentais de uma masculinidade muito dependente da aprovação de terceiros e de rituais de auto-afirmação. Assim, Tyler ocupa no filme a imagem do forasteiro, posição que não se estabelece apenas por sua cor de pele, mas é acentuada por este fator. A todo momento Tyler é escanteado por não conhecer as brincadeiras do grupo, o tipo de bebida que eles consomem, as canções favoritas do R.E.M. (o rock alternativo branco é apresentado como o oposto do hip hop neste filme)...

    Em um filme sobre constrangimento, Mitchell é capaz de representar um desconforto quase palpável em determinadas cenas com uma atuação segura. Uma das mais contundentes é a sequência na qual o grupo brinca de imitar sotaques com base em um sorteio. Assim, eles fazem troça de chineses e indianos para as risadas de todos até que o sotaque negro é sorteado. É simbólico que a única pessoa na sala descontente com a brincadeira tenha sido o único amigo abertamente homossexual do grupo, o que acena para uma ideia de que as minorias tendem a serem mais empáticas entre. Por fim, Tyler acaba cedendo, quase sem perceber, e decide parodiar o que seria o sotaque de uma "velhinha de Nova Orleans". Os demais homens se divertem. Mas a linha entre "rindo com Tyler" e "rindo de Tyler e consequentemente endossando a ideia de que negros são piada" fica no ar.

    Deste momento em diante, Tyler passa a se retrair cada vez mais e recorrer ao álcool na medida em que se sente mais excluído — o que acontece com mais intensidade quase sempre que novos desconhecidos chegam. É interessante notar que a dramaturgia proposta por Silva deixa o espectador em alerta para a maneira como Tyler é tratado e para a maneira como ele se porta, provocando uma reflexão sobre as sutilezas, limites e reservas das relações raciais. Sendo assim, mesmo o uso de expressões como "buraco negro" e os questionamentos sobre os gostos de Tyler no café da manhã podem ser vistos como hostilidades subliminares. Tudo isso ganha ainda mais peso quando se situa a temporalidade do filme no dia da posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos entre personagens que se autodeclaram liberais ou progressistas.

    Silva claramente deseja subverter expectativas no filme indicando rompantes que de fato nunca acontecem. Por mais que isso mostre a fidelidade do realizador às suas próprias ideias, a proposta também faz o filme perder parte de seu impacto potencial e até entrar em uma narrativa redundante, uma vez que não aponta para nenhuma grande conclusão. Talvez a ideia não seja retratar rupturas radicais ou possíveis conciliações raciais, mas apenas observar as subjetividades de um processo delicado de relação que envolve fatores complexos. Com certo faro para o humor, o diretor repete a parceria com Michael Cera (com quem trabalhou em Crystal Fairy e o Cactus Mágico) e faz acenos à comédia. O personagem de Cera chega na casa no meio da comemoração e parece ser o único disposto a tentar tornar a vida de Tyler mais fácil naqueles dias.

    Usando uma lente objetiva grande-angular, as bordas distorcidas do quadro ajudam a formular a sensação e ebriedade que o filme exala em muitos momentos. O uso constante da câmera na mão casa bem com atmosfera de caos que se dá naquela casa cheia de homens barulhentos movidos à bebida do momento em que acordam até a alta madrugada. Sendo assim, há um aspecto cacofônico que, por ser tão constante, causa incômodo. Nota-se também uma opção por um trabalho de câmera mais fechado no rosto dos atores, o que permite que se evidencie as boas atuações de Mitchell, Abbott, Cera e Jones.

    Tyrel é um filme sobre um estranho numa terra estranha que chega perto de esgotar seu conceito, mas é uma produção eficiente em apontar as nuances entre hostilidade e cordialidade nas relações raciais.

    Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.

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