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    Sashishi deda
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Sashishi deda

    O empoderamento pela arte

    por Bruno Carmelo

    Que bela época para assistir ao georgiano Scary Mother! Quando grupos conservadores, no Brasil e no mundo, sugerem que a representação de sexo/nudez/violência é capaz de destruir as instituições tradicionais e a censura ainda tem espaço na sociedade democrática, o drama aborda exatamente o potencial transformador de uma obra de arte. No caso, o inesperado livro redigido por uma dona de casa, Manana (Nato Murvanidze), mulher vista pelo marido e pelos filhos como uma criatura de pouca inteligência.

    Terminado o texto, ela faz uma leitura aos entes queridos. Manana devora as palavras em tom de urgência: seu texto está repleto de delírios eróticos, satânicos, além do desprezo evidente pelos alter-egos pouco dissimulados do marido e dos filhos. Ela pode insistir que tudo é ficção, mas é difícil acreditar no despojamento de um texto tão próximo de sua vida. Através da arte, a autora expurga os maus-tratos da vida de mulher, mãe, esposa e artista incompreendida.

    A diretora Ana Urushadze desenvolve seu estranhamento aos poucos, numa atmosfera hipnótica. As imagens ostentam uma íris escurecendo as bordas do quadro, as cenas se alternam em temporalidade pouco delimitada, a protagonista hesita entre a ingenuidade e a perversidade. Não por acaso, o livro gira em torno de uma mulher-fera, sedenta pelo sangue de mulheres grávidas e pela carne dos fetos humanos. Murvanidze capricha na mistura de atividade e passividade, sadismo e masoquismo. É impossível delimitar o mundo interior ou julgar as histórias fantasiosas daquela mulher. A fronteira entre ficção e realidade é convenientemente borrada.

    A reação dos leitores involuntários transforma a história num delicioso pesadelo kafkaiano. O marido exige a queima do material original, um colega solta gritos de obra-prima, o pai de Manana fica deslumbrado com uma escrita tão “suja e pornográfica”, editores consideram o material impróprio para publicação. Qual é o limite entre um livro excelente e outro péssimo? Quando muitas obras são redescobertas e reavalidas décadas mais tarde, de que modo atestar o eventual talento da dona de casa? Scary Mother envereda por um comentário curioso, não destituído de humor, sobre a difícil determinação do valor artístico - especialmente num meio operário e feminino.

    Aos poucos, a obra adquire um teor surrealista, opondo a base social verossímil (a vida de classe média baixa da família, o imenso conjunto habitacional onde moram) a espaços próximos da ficção científica (o quarto vermelho emprestado pelo colega, o galpão de objetos perdidos, o quarto onde o vizinho trata uma mulher misteriosa). Manana passa a estimular catástrofes em sua vida como catalisadoras para a inspiração literária. Qual é a ética da criação a partir da exposição da intimidade alheia? Qual é o limite da autoexposição?

    Não se sabe se a protagonista é um gênio ou um embuste, uma pessoa iluminada ou um caso psiquiátrico. Talvez seja os dois. A brilhante cena de conclusão revela a fome literal com que esta mulher incorpora o prazer adquirido pela escrita. Antes oprimida, agora ela ganha a oportunidade de vingança em texto. Com uma caneta na mão, quem controla o jogo é Manana.

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