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    O Nó do Diabo
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    O Nó do Diabo

    Terror sem fim

    por Lucas Salgado

    Muitas vezes analisado como mero escapismo, o cinema de gênero também tem uma postura crítica social e política ao longo da história da sétima arte, em especial quando lembrarmos as obras de George A. Romero, Tobe Hooper ou Wes Craven. Não há problema algum em ser entretenimento e também ser crítico ao mesmo tempo, e o horror é uma ferramenta ótima para isso.

    E é esse caminho que segue o nacional O Nó do Diabo. Dividido em cinco capítulos, o longa acompanha dois séculos de violência, opressão e preconceito, debatendo ao longo dos anos as relações entre os funcionários negros e os patrões brancos. Neste sentido, é importante destacar a escolha de um mesmo ator para interpretar o dono da fazenda ao longo desses 200 anos. Num simbolismo óbvio, mas inteligente, o filme mostra que diferentes negros foram oprimidos ao transcorrer da história, mas que o branco, de certa forma, era a mesma pessoa. Assim, a produção humaniza os personagens negros e coloca uma marca quase que de vilão ao fazendeiro branco.

    Pensado inicialmente como série de TV, o longa possui aqueles problemas comuns de obras coletivas. São quatro diretores e sete roteiristas. Embora haja uma união temática e bons elos de ligação entre as obras, é impossível chegar a uma homogeneidade, há alguns problemas de ritmo, principalmente por causa da duração exagerada (são 124 minutos). De qualquer forma, também fica a impressão de que funciona melhor como cinema do que como série, uma vez que, vistos isoladamente, os episódios perderiam muito da força.

    Sendo um filme que procura debater os horrores do passado, é interessante notar que o primeiro capítulo faz uma aposta num cenário futuro. Começamos em 2018, com um capataz sendo pressionado pelo fazendeiro a proteger sua propriedade abandonada dos moradores da região, que veem no espaço um lugar propício para festas. A capataz é uma figura quase ensandecida, com zero de estabilidade emocional. De certa forma, representa o Brasil de hoje - que pode piorar ano que vem -, seguindo o caminho da intolerância. Não por acaso, mata jovens, negros, mulheres e gays. Dirigido por Ramon Porto Mota, o episódio de abertura lembra um pouco o cinema de David Cronenberg, em especial no que diz respeito a brutalidade.

    Daí, partimos para 1987 naquele que é o melhor capítulo dos cinco. Dirigido pelo mineiro Gabriel Martins, o curta segue um casal de negros que busca emprego na fazenda da família Vieira. Lá, se deparam com um cenário inquietante. Já estamos no terço final do século XX, mas as marcas da violência e da intolerância seguiam presentes. Dividindo bem o olhar de seus protagonistas, Gabriel insere um homem que, no desespero de conseguir um lugar para ficar e pela pressão de cuidar de sua esposa, acaba embarcando numa viagem de violação que remete à escravatura, inclusive através de objetos usados décadas atrás na mesma fazendo. A esposa dele, no entanto, surge num estado permanente de desconforto, que lembra bastante o recente Corra!.

    Muita gente releva a questão do lugar de fala na sétima arte e, é claro, existem exemplos ao longo da história de cineastas brancos que retrataram bem a questão do afro descendente ou mesmo homens trabalhando bem o olhar feminino. Mas é sintomático que o melhor episódio do filme parta do olhar de um diretor e roteirista negro. Estética e tematicamente, O Nó do Diabo segue uma unidade importante, mas é Gabriel que entrega o capítulo mais denso e perturbador.

    O terceiro curta é passado em 1921, seguindo uma aura de Carrie, a Estranha, clássico de Brian De Palma. A trama acompanha duas irmãs que vivem num regime de escravidão no interior, independente do fato de já passados vários anos da abolição. Uma é mais rebelde, a outra mais "mansa", nas palavras do senhor tradicional, que demonstra prazer em torturar as duas - como fica claro em uma dura sequência de chibatadas. Aos poucos, o episódio comandado por Ian Abé vai ganhando elementos sobrenaturais, que crescem na medida que os abusos e a revolta aumenta.

    Passado em 1871 - ano em que os filhos dos pais escravos foram alforriados -, o quarto episódio acompanha um escravo que foge da fazendo e da tortura dos Vieiras após perder a esposa e o filho. A trama é irregular e bem distante do impacto atingido com os anteriores. A direção é de Jhesus Tribuzi.

    Chegamos então no ano de 1818, dois séculos antes do primeiro episódio. Para fechar o ciclo, retorna o diretor do primeiro, Ramon Porto Mota, que assume uma narrativa que remete aos clássicos do cinema de mortos vivos, em especial Romero. Retrata quilombolas escapando em direção às terras da família Vieira, mas exagera na teatralidade e perde bastante da força dos três capítulos iniciais.

    Zezé Motta é o nome mais conhecido do elenco, seguida por Fernando Teixeira, que vive o quase fantasmagórico Vieira. A força do elenco, no entando, está nos atores menos conhecidos, como Isabél Zuaa, Cíntia Lima, Edilson Silva, dentre outros.

    Ainda que irregular, estamos diante de uma obra singela, que conta com ótimos trabalhos de direção de arte (Manoele Scortegagna) e, especialmente, desenho de som (Catarina Apolonio e Raul Arthuso). Ainda que por vezes exagerado, o som é parte fundamental da construção do clima de suspense e urgência.

    O Nó do Diabo resgata o passado para refletir o presente e pensar o futuro. E o resultado não é muito otimista. Ousado em suas posições, trata a escravidão como algo que ela foi: um horror.

    Filme visto durante a cobertura do 50º Festival de Brasília, em setembro de 2017.

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    Comentários

    • El Django
      Filme beeeem irregular. E apenas regular. Inclusive na questão social e nas críticas políticas, trata o mundo como se tudo fosse preto e branco. O branco opressor, e as minorias oprimidas. Romantiza invasores de terra (que, de fato, são pessoas que - em sua grande maioria - não querem terra pra trabalho e sim pra revender e ganhar dinheiro. E isso virou negócio no Brasil), vilaniza todo e qualquer branco, transformando-os em matadores de gays e abusadores de negros. Até o capataz branco (que visivelmente é um psicopata - e isso não depende de cor de pele) é retratado o tempo todo escutando programas políticos pró-direita no rádio. É triste ver que esse tipo de crítica rasa tomou conta do cinema (e das mídias em geral). E o cinema brasileiro, que nunca teve lá a profundidade como uma característica a ser elogiada, padece desse mal mais ainda. Mas, pelo menos, os abusos, traumas e absurdos da escravidão são bem retratados, ainda que ocorram alguns exageros. E teve a coragem de mostrar alguns negros capatazes caçando negros, como ocorria de fato.
    • Danilo Oliveira
      A crítica não fala nenhuma mentira nesse sentido. É a possibilidade real. Só não vê quem não quer, ou não é alvo ou no fundo é conivente.
    • Ivan Silva Gonçalves
      O Bolsonaro foi eleito democraticamente! Não vai ter ditadura no Brasil!
    • Priscila Melo
      Assistirei o filme. É sempre importante retomarmos o passado e estarmos antenados aos pequenos (e grandes) sinais. Parabéns pelo texto de crítica, precisamos de mais críticos capazes de conectar as artes com o contexto atual.
    • Albert Bordélio
      De certa forma, representa o Brasil de hoje - que pode piorar ano que vem -, seguindo o caminho da intolerância. Não por acaso, mata jovens, negros, mulheres e gaysPerdeu toda a credibilidade de criticar, parei de ler ai, e a propósito, o filme é uma merda.
    • Rafael Oliveira
      elo de ligação
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