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    Muitos Filhos, um Macaco e um Castelo
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Muitos Filhos, um Macaco e um Castelo

    Comédia da vida privada

    por Bruno Carmelo

    A mãe do ator e diretor Gustavo Salmerón não é como as outras. Julia possui um humor particular: ela é capaz de rir de si mesma o tempo inteiro, brincar enquanto está nervosa, espalhar cinzas de um ente morto pelo corpo ou pedir que lhe espetem o cadáver antes de enterrá-la, para comprovar que não está viva. De certo modo, ela adora e odeia a homenagem que o filho faz através deste documentário: pouco depois de dizer que não deseja ver o filme lançado, ela repete os gestos com mais uma tomada para as câmeras. Julieta é uma personagem de si mesma, uma persona fictícia criada por uma pessoa real.

    O documentário, portanto, se articula entre a aparência de realismo e a possibilidade de ficção. Julia teria dito tantas coisas hilárias espontaneamente? Ela realmente pretende ser enterrada vestida de freira, ela tinha mesmo o sonho de vestir seu macaco de estimação com roupas de bebê? Talvez a resposta importe pouco. Para Salmerón, mais interessa uma espécie de ensaio sobre a excentricidade, no qual quatorze anos de gravações caseiras foram condensados numa espécie de “melhores momentos”, com direito às manifestações mais hilárias desta mulher que concretizou o sonho de ter vários filhos, um macaco e um castelo. Para o público, pode ficar a impressão de que tamanhos disparates eram pronunciados numa frequência cotidiana. Talvez eles tenham sido diluídos de modo mais verossímil ao longo dos anos.

    O que o cineasta chamou de “tragicomédia”, ao apresentar o seu projeto, também poderia ser visto como uma leitura debochada sobre a alienação das classes privilegiadas. Enriquecida devido a uma herança, Julia passa a acumular milhares de objetos, entre os preciosos (lustres, estátuas) aos inúteis (guarda-chuvas quebrados, centenas de roupas de bonecas) e exóticos (vértebras de entes queridos, tesouras de menos de um centímetro de tamanho). A câmera se delicia ao abrir cada caixa, ao ver a mulher descrever sua paixão pelos objetos cuja existência já tinha esquecido há tempos. Estamos próximos de uma fábula sobre princesas ricas que, por possuírem muitos objetos, acabam possuídas por eles.

    No entanto, nenhum comentário particularmente crítico é efetuado a respeito de tamanho desperdício e acúmulo. O riso, neste caso, é autocondescendente – este seria o oposto do olhar melancólico e perturbador dos irmãos Maysles às divas decadentes de Grey Gardens. Naquele caso, a desconexão das mulheres com a realidade implicava num feroz comentário social. Aqui, Julia vive alegremente cortada do meio ao redor. Sua presença é atemporal, seu cotidiano orbita apenas em torno dos objetos, dos macacos dos e filhos que transitam pela casa-castelo. Aparentemente, ela nunca teve uma profissão, amigos, viagens. A protagonista se assemelha a ser fictício sem laços com o mundo exterior.

    Salmerón imprime um ritmo agradável ao conjunto, saltando de modo ágil entre cada esquete cômica. A montagem consegue imprimir com facilidade o espanto dos familiares ditos “normais” (mesmo tendo sido criados dentro de um castelo) diante das atitudes da matriarca caprichosa, enquanto as transições são ornadas com música jocosa de fanfarra. Aos poucos, a sucessão de rompantes histriônicos torna-se previsível, ou pelo menos repetitiva. O diretor observa a mãe com uma mistura de carinho e surpresa, embora não consiga apresentar nenhum distanciamento para fornecer qualquer discurso a partir deste modo de vida excepcional. É divertidíssimo que Julia seja uma figura excêntrica; porém é limitador que ela seja apenas excêntrica.

    Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.

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