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    Retrato do Amor
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Retrato do Amor

    Imagem e ilusão

    por Bruno Carmelo

    “Você quer tirar uma foto? Depois você vai poder sentir o sol, o vento, vai escutar as pessoas conversando”. Esta frase, disparada por um fotógrafo no início de Retrato do Amor, idealiza o papel da arte ao transformá-la não num decalque do real, e sim em seu substituto, seu prolongamento ao longo do tempo. Possuir a fotografia de algo equivaleria a possuir o elemento fotografado consigo, para sempre – a imagem estática passa de representação a apreensão. No entanto, poucos minutos depois, a pergunta se repete, pela boca de outro fotógrafo de rua, no mesmo local turístico. “Quer tirar uma foto? Depois de um tempo você vai sentir o sol, o vento, vai escutar as pessoas conversando. Senão, tudo vai desaparecer. São cinquenta rúpias”. A bela digressão poética se perde, regredindo ao estágio de proposta comercial e chantagem emocional.

    A ressignificação de símbolos ocorre durante toda a narrativa deste romance indiano. Um sorvete local, signo de teimosia do fotógrafo Rafi (Nawazuddin Siddiqui), que só o compra no final do mês, depois se vê revestido de uma conotação emocional; a história de um fantasma retorna ao protagonista em tom muito mais concreto; uma marca de refrigerantes vira prova de amor; a presença de um rato dentro da sala de cinema passa de surpresa ao tédio; a foto da estudante Miloni (Sanya Malhotra) num outdoor evolui de revelação da identidade da garota à prova de uma mentira. Para discutir o peso da imagem e sua representação, o diretor Ritesh Batra evoca uma infinidade de pequenos símbolos cotidianos, habituais na cultura local. Aos poucos, estes elementos se repetem em novo contexto, adquirindo valor distinto aos protagonistas e ao espectador. Trata-se de uma proposta simples, ainda que bastante funcional dentro da premissa metalinguística.

    Aliás, a noção de “delicadeza” costuma ser convertida em eufemismo por parte da crítica, especialmente em se tratando de obras orientais, mas caberia muito bem neste projeto. Não se trata de abordagens subentendidas ou colocadas em segundo plano, apenas marcadas por contemplação e nuances. A questão da luta de classes, por exemplo, é evidente na relação entre o fotógrafo pobre e a estudante de classe média, mas nenhum diálogo maniqueísta é introduzido na intenção de explicitar o óbvio. Batra prefere outros recursos: Miloni, namorada fictícia do fotógrafo na intenção de aplacar as cobranças da família dele, aceita como presente uma correntinha da pretensa sogra, idêntica àquela de sua empregada doméstica. A força do projeto se encontra na crença das imagens enquanto elementos discursivos em si, e na inteligência do espectador para compreender associações puramente cinematográficas (a exemplo da montagem paralela, aproximando os amantes antes mesmo que o roteiro o faça).

    Retrato do Amor concebe dois heróis tímidos, de poucas palavras, ambos sofrendo uma pressão semelhante para se casarem, e rechaçando a insistência familiar com um meio-sorriso habilidoso por nem acatar as ordens, nem recusá-las com veemência. Rafi e Miloni são desprovidos tanto da malícia contemporânea dos jovens quanto da astúcia de sobrevivência dos adultos. Diante deles encontram-se uma avó determinada, amigos extrovertidos e um professor de contabilidade conquistador. Na maioria dos filmes contemporâneos, estes coadjuvantes estariam à frente da trama, mas Batra opta pela poesia simples dos olhares cruzados e dos não ditos (a metáfora da raspadinha de rua, que causa doenças no organismo delicado dos burgueses, enquanto se acomoda bem à barriga resistente dos pobres). Este é o tipo de projeto que, ao invés de nos encaminhar à catarse prometida por todo romance, oculta qualquer desfecho que possa ser previsto pelo espectador. “Eu conheço o fim do filme”, dispara Rafi após abandonar uma sessão de cinema, comentando ironicamente o próprio filme em que se encontra.

    Enquanto isso, o romance surpreende pela belíssima construção estética: um único tema musical se desenvolve de modo pontual e singelo, a fotografia impecável simula a granulação da película, a iluminação aproveita o melhor dos espaços urbanos, e os atores jamais pronunciam uma frase em tom acima do necessário. Batra propõe uma obra de impressionante coesão estética e narrativa, discursando sobre o afeto em tempos de tradição e falsas imagens (da decência, da perfeição, da honra). Este é um cenário corroído pela naturalização das desigualdades sociais, representadas sem qualquer tipo de conformismo ou revanchismo. O amor inventado de Rafi e Miloni, apenas para agradar os olhares alheios a aparecer nas fotografias oficiais, converte-se microscopicamente em amor real, perceptível apenas ao olhar cúmplice do público. Neste piscar de olhos, Retrato do Amor revela sua impressionante qualidade cinematográfica dentro de um gênero desgastado por recompensas fáceis.

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