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    Cyrano Mon Amour
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Cyrano Mon Amour

    O triunfo do fracasso

    por Bruno Carmelo

    No fim do século XIX, o jovem Edmond Rostand prepara uma nova peça de teatro, e tudo indica que o resultado será uma catástrofe. A data para entregar o texto se aproxima, mas ele não consegue escrever uma linha sequer. Os atores estão fora de tom, o figurino parece contemporâneo demais, o dinheiro está acabando. Para piorar, a peça é preparada em versos rimados, muito menos populares do que a prosa. Absolutamente tudo parece dar errado, exceto pelo fato de a peça em questão ser Cyrano de Bergerac, um dos maiores sucessos da história do teatro francês, e também do cinema. Sabe-se que Cyrano foi apresentado mais de mil vezes no palco, além de dar origem a diversos filmes e telefilmes sobre a tragédia do homem apaixonado, porém muito feio.

    Cyrano Mon Amour se constrói, portanto, sobre a farsa evidente, a brincadeira com expectativas. O público pode saber exatamente onde a aventura chegará, mas se questiona sobre seu percurso: como afinal este caos criativo resultou num clássico absoluto? Cyrano, o personagem real, era escritor, e Edmond, poeta, também o era. Aborda-se então a escrita sobre escritores, o cinema comentando o teatro que, por sua vez, comenta a literatura. A trama é baseada numa metalinguagem vertiginosa em que todos personagens são, ao mesmo tempo, reais e fictícios, dedicados e bufões, honestos e maliciosos. Edmond (Thomas Solivérès) representa um jovem ingênuo convertido em gênio, Constant Coquelin (Olivier Gourmet) constitui um dos atores mais famosos de sua época, mas se comporta como um amigo despretensioso sobre o palco, Jeanne (Lucie Boujenah) jamais atuou em sua vida, porém diante de um imprevisto, descobre-se atriz e comove a plateia. Neste universo de artifícios, os personagens constituem ao mesmo tempo sua aparência e seu contrário.

    A brincadeira de identidades trocadas e amores escondidos resulta no melhor aspecto da narrativa. Em quase duas horas de duração, o filme mantém um ritmo veloz, com cortes bruscos e movimentação frenética da câmera para acompanhar os personagens se confrontando enquanto entram e saem de casas, camarins e bares. As cenas do quarto de hotel e a declaração de amor anônima sob o balcão são particularmente bem orquestradas em termos de ritmo, conseguindo brincar de todos os personagens envolvidos sem ridicularizar ninguém. O diretor Alexis Michalik (que oferece a si mesmo o papel de Georges Feydeau, em sua vertente mais arrogante) possui evidente carinho por estes personagens, desde os mais inocentes até os mais maliciosos. Ele se delicia em revelar não exatamente a magia da ficção, mas os percalços por trás da mesma – em outras palavras, ele se posiciona como mágico disposto a revelar seus truques. Neste percurso, valoriza a criação artística enquanto fruto de um trabalho coletivo e parte de um processo, ao invés de um surto momentâneo de genialidade como normalmente se associa aos grandes artistas.

    Mesmo assim, nem tudo são flores neste projeto. Michalik sacrifica uma parte considerável da verossimilhança humana e histórica em nome do humor. O espectador pode ter dificuldade em acreditar na pane criativa de Edmond, que parece ter ideias brilhantes a cada nova discussão com os colegas. De mesmo modo, torna-se improvável que Jeanne demonstre tamanha ingenuidade apesar das inúmeras reviravoltas envolvendo seu amado. A propósito, as mulheres recebem o tratamento menos favorável em meio à farta galeria de personagens, resumindo-se a histéricas (Maria Legault, Sarah Bernhardt) ou infantis (Jeanne d’Alcie, Rosemonde Gérard), sem meios termos. Enquanto isso, os homens se convertem em raposas que se deslocam com fluidez através dos círculos de mulheres facilmente manipuláveis.

    Ao menos, os atores claramente se divertem com as brincadeiras de referências destes personagens-interpretando-personagens. Olivier Gourmet encontra um intermediário interessante entre a figura do fanfarrão e o ator comprometido ao seu papel, e Tom Leeb consegue acrescentar camadas à figura do homem belo, burro e consciente de sê-lo. É uma pena que o protagonista, Thomas Solivérès, seja o ator menos versátil do grande elenco, reduzindo a crise existencial de Edmond a uma mistura de estupor e timidez. Falta malícia ao ator, especialmente quando se encontra diante de nomes do porte de Gourmet e Mathilde Seigner.

    Por fim, boas e más escolhas se misturam numa espiral alucinante de autoescárnio e autorreferência. Cyrano Mon Amour funciona muito bem enquanto comédia – gênero que constitui a prioridade evidente do diretor. Seu aspecto histórico torna-se menos confiável, já que todos os elementos são parodiados ou exagerados, ainda que o resultado possa se surpreender com a quantidade de passagens factualmente precisas. O espectador deve sair da sessão conhecendo pouco sobre Edmond Rostand ou mesmo sobre as qualidades da peça Cyrano de Bergerac, mas terá uma boa amostra das brigas, amores e imprevistos que podem acontecer por trás das cortinas.

    Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês, em junho de 2019.

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