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    No Portal da Eternidade
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    No Portal da Eternidade

    O outro lado da escuridão é amarelo

    por Renato Furtado

    As gentis notas de um afetuoso piano, tocado com um tipo de distanciamento, acumulam-se sobre um campo de girassóis mortos no inverno, árvores balançando ao vento em um dia iluminado e, em seguida, uma longa planície, estendendo-se até se perder de vista. Estas podem ser vistas como imagens prosaicas, quase triviais, mas não aos olhos de Vincent van Gogh (Willem Dafoe). Ele desbrava um matagal, escala um pequeno morro, joga terra sobre o rosto, corre pelos campos: mais do que nunca, está em contato com a realidade — em contato com Deus que está na natureza, e a natureza é beleza, nas palavras do artista. Mas então a música cessa, o frio retorna rasgando a melodia e o céu perde o resplendor.

    Marcado por cortes secos e abruptos em toda sua projeção, obra de uma montagem inquieta e ímpar, No Portal da Eternidade é uma cinebiografia ousada, que nunca se rende às convenções ou intenta adequar-se às estruturas, missão que seu protagonista jamais pôde cumprir em relação ao establishment artístico de sua época. Porque mais do que se debruçar sobre seu objeto de estudo, o filme baseado em eventos reais de Julian Schnabel (O Escafandro e a Borboleta), cineasta que é também um pintor renomado, está interessado no que mora do outro lado dos fatos: está interessado em dissecar a mente adoecida de um homem que alterou o curso da perspectiva ocidental e o lugar deste outsider no fluxo da História da Arte.

    Quando se trata de uma figura tão polarizante quanto van Gogh em termos de personalidade e de relevância como artista, o longa compreende muito bem que não existem respostas fáceis: a infame automutilação da orelha esquerda do pintor, caso que acompanha sua memória e que mancha a biografia do holandês, não nos é mostrada. Uma escolha feliz de Schnabel, diga-se de passagem, já que a decepação prenderia a atenção do espectador em um momento apelativo, desviando, assim, o foco do que realmente importa: capturar a essência ora tempestuosa, ora pacífica de um homem cujos distúrbios psicológicos são estudados por especialistas até hoje.

    É interessante perceber, portanto, como No Portal da Eternidade nem sempre tenta vender, ainda que o faça ocasionalmente, a ideia pré-concebida de que van Gogh não encontrou êxito em vida por ser um gênio incompreendido. Enquanto é verdade que sua produção nadou na contramão das correntes artísticas que disputavam a hegemonia do universo da pintura do fim do século XIX, também é fato que o pintor jamais teve a chance de ser "como eles, sentar com eles" — como narra a voz de Dafoe no início da trama —, porque sua prejudicada saúde mental o impedia. Se hoje ainda há pouquíssima compreensão acerca sobre os portadores de transtornos mentais, não é difícil imaginar como a estrada foi dura para van Gogh.

    Marginalizado pelos preconceitos e visto como louco, o holandês tinha um temperamento volátil, o que só acarretou problemas em suas tentativas de socialização. É como Gaby (Stella Schnabel), empregada da pensão francesa de Madame Ginoux (Emmanuelle Seigner), que serviu de moradia ao pintor durante alguns anos, diz: se ele tomasse um banho, até ficaria atraente. Sua falta de tato no trato com outras pessoas isolou o artista, que só pôde mesmo encontrar paz e alívio da escuridão e da ansiedade que o rondavam constantemente ao pintar, frequentemente ao ar livre. Distante das pressões e das obrigações do contrato social, van Gogh podia ser van Gogh, cujo espírito livre é incorporado com brilho por Dafoe.

    O trabalho desempenhado pelo ator em No Portal da Eternidade é de pura maestria; é, de fato, o trabalho de um artista que tem total controle de sua arte. Ao passo em que a montagem ocasionalmente dá um passo atrás, nos arrancando da contemplação da beleza do mundo para nos lançar novamente em meio ao turbilhão da realidade, é Dafoe — que aprendeu a pintar como van Gogh — o fio condutor da narrativa. São seus olhares perdidos e sorrisos ternos que traduzem o desespero e as alegrias de um homem cuja vida é perturbada por demônios internos. Distante da reprodução homogênea que denota boa parte das interpretações de figuras reais, o ator captar a essência de seu personagem através dos gestos.

    Essa questão é particularmente relevante porque Schnabel, sabiamente, evita a verossimilhança. Dafoe é um ator que já passou da casa dos 60 anos, enquanto van Gogh faleceu aos 37. Por outro lado, Oscar Isaac, prestes a completar quatro décadas de vida, é um quarto de século mais jovem que seu companheiro de cena e, em No Portal da Eternidade, vive Paul Gauguin, pintor francês cinco anos mais velho que o holandês. Ao romper o compromisso com o factual também no âmbito da escalação, o diretor amplia o choque entre os dois artistas, separados não só pelas suas sanidades, como também afastados pela persona ultra-masculina, pretensamente revolucionária e frequentemente tóxica de Gauguin.

    Tudo, em suma, é realizado aqui de modo a resgatar o olhar distorcido e muito particular de van Gogh, incluindo o exame de suas causas e consequências pessoais e públicas. É uma operação minuciosa que, por si só, alavanca No Portal da Eternidade, acima de tudo por causa da belíssima direção de fotografia de Benoît Delhomme (A Teoria de Tudo), cuja câmera fluida e afetiva ultrapassa o cinema de Schnabel ao emular a perspectiva do pintor holandês. Em outras palavras, os quadros — amarelos, desfocados, tortos, desconcertantes, frenéticos, quase sempre subjetivos, nunca fixos e banhados pela luz natural — que são registrados pelo filme poderiam muito bem existir em uma realidade paralela onde van Gogh é um cineasta.

    Contudo, essa janela de afetos e sentimentos quase tangíveis que é aberta para a mente e para o mundo que gira ao redor do protagonista é ocasionalmente cerrada pela dualidade inevitavelmente imposta pela edição de No Portal da Eternidade. Em seu esforço para transpor a vida do holandês para as telonas, Schnabel, que também assina a montagem, acaba por se perder nas desconexões que propõe entre imagem e som. Por mais que seja interessante a sua recusa em emocionar facilmente através de um uso didático da trilha sonora, um costume no gênero biográfico, a costura retalhada de vinhetas e elipses gera uma linearidade irregular que nem sempre comunica a universalidade da trajetória de van Gogh.

    O jogo estabelecido entre os convites feitos pelo filme ao espectador e o afastamento que o mesmo provoca ocasionalmente — que é, de fato, uma interessante leitura da insanidade de seu protagonista —, é um trunfo, mas também uma armadilha. No Portal da Eternidade nos instiga a buscar a beleza do comum, como fez o holandês, mas também encerra-se em si próprio ao não fornecer informações o bastante para facilitar o entendimento das razões que fazem com que van Gogh seja van Gogh. Em outras palavras, não ter pelo menos uma base de conhecimentos sobre a História da Arte ou sobre a vida do biografado pode, de certo modo, prejudicar a experiência de algumas das questões colocadas por Schnabel.

    Em uma sequência no interior do Museu do Louvre, por exemplo, o pintor cita Goya e Veronese, dentre outros artistas, como suas principais referências. A união dos dois não é produto do acaso, uma vez que ambos representam  à perfeição as contradições internas da própria arte de van Gogh, os choques que o transformaram em um "gênio incompreendido". Como homem de formação religiosa, o pintor holandês pautou-se por um ideal divino, mas também integrou-se, por influência dos impressionistas, à corrente pictórica de sua época. Ou seja, ao mesmo tempo em que era devoto, van Gogh também buscava outra forma de pintar. Era, portanto e de certo modo, um conservador e um revolucionário.

    A cena mais impressionante da projeção, os quase 10 minutos de diálogo entre o personagem de Dafoe e o padre interpretado por Mads Mikkelsen, no último ato de No Portal da Eternidade, exemplifica não só o contraste supracitado, como também o embate entre o caráter centrípeto do filme e suas potencialidades em direção ao que é externo e universal. É, sem sombra de dúvidas, um duelo fantástico entre dois excelentes atores, mas cujo conteúdo íntimo provavelmente não será apreendido em sua totalidade pelo espectador médio. Assim, ao mesmo tempo em que vocaliza a perturbação causada pela arte de van Gogh, considerada "feia" por muitos, a cinebiografia não deixa claro, por completo, o porquê do incômodo.

    Mais diálogos como este fazem falta: é através das palavras, e não necessariamente dos afetos, por mais que sejam intensos e arrebatadores, que No Portal da Eternidade se abre. O longa pode ser de Dafoe, mas as curtas, porém cruciais participações de Isaac, Mikkelsen, Seigner e de Rupert Friend e Mathieu Amalric, que interpretam o irmão e o médico de van Gogh, respectivamente, deixam entrever uma obra que poderia se beneficiar mesmo da conversa e do poder do discurso. O didatismo e a exposição, quando empregados de forma correta, não precisam ser evitados a todo custo; aqui, por sinal, seriam muito bem-vindos, já que sintonizariam melhor as potencialidades desta cinebiografia, por vezes fria demais.

    De todo modo, No Portal da Eternidade acerta muito mais do que desliza em sua corajosa e afetuosa abordagem, evidenciando a sempre aguda atualidade de van Gogh. É possível mesmo que a cinebiografia definitiva do pintor ainda venha a ser produzida, como também é possível que ela nunca venha a existir: assimilar a mente de um gênio é, afinal, uma tarefa de proporções bíblicas — e este sonhado projeto não é No Portal da Eternidade. Mas como clara carta de amor ao pintor holandês, escrita por um dos mais talentosos e autênticos pintores contemporâneos, é excelente. Após o malsucedido Miral, de 2010, Schnabel está retomando a sua melhor forma como cineasta. A sorte é nossa.

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    Comentários

    • Geisa Ferrari
      Eu concordo com a crítica, que o filme exigi um conhecimento prévio da historia de Vincente Van Gogh. Mas, eu amei ver o filme, ele me fez buscar a biografia, as pinturas, tudo dentro do filme tem um porque, segue a logica cronológica, conta a, provável, verdade real dos fatos. Além disso, é verdade que falta alguma coisa a mais para prender o espectador, porém se nota que a vontade do cineasta não é prender o espectador, não é ser tradicional, não é te agradar, não é usar do subconsciente. Então eu amei isso, pois odeio quem subestima a inteligência dos outros. Em suma, só tenho a agradecer pelo filme. E vim ver a crítica pra compreender ainda mais. Na arte, na literatura, se exigi o esforço intelectual, não é deleite sempre.
    • Cleiton Oliveira da Silva
      Filme péssimo, afetado e feito ao gosto dos pretensiosos. Impressionante como um trabalho tão mal digerido pode atrapalhar inclusive a fruição da performance de um bom ator, como Willem Dafoe. Os diálogos, péssimos, estão coalhados de um discurso historicizante da arte, completamente incompatível com aquilo a que se propõe: investigar a psicologia do personagem. Fica no meio caminho entre o retrato psicológico, o ensaísmo histórico de arte, o experimentalismo estético. Pretende ser diferente, falhou nos três eixos. A trilha sonora é certamente um dos pontos mais negativos e irritantes: não agrega nada à narrativa. Só reforça a combinação extremamente estereotipada entre música clássica-pintura.Esperava um ótimo filme sobre o Van Gogh, grande decepção.
    • Cristina
      Me identifiquei totalmente com seus comentários! Um belo filme que deixa um vazio (além de muito monótono na maior parte)
    • Isabelle
      Pouco se pode acrescentar a essa alentada e detalhada crítica. O filme é diferente dos muitos que tratam da conturbada vida de Van Gogh porque parece tentar fazer uma biografia a partir de sentimentos e não de fatos. Dafoe é maravilhoso, de uma doçura e desamparo que é impossível não se estabelecer uma relação afetiva com ele e, consequentemente, com o personagem. Sua imagem se sobrepõe a tudo - mesmo às imagens que Vincent tanto queria imortalizar. Mais do que como as paisagens se apresentavam, o filme tenta nos passar como Vincent as sentia. Mas, como é difícil fazer cinema, ainda mais quando se quer dizer algo e não simplesmente divertir e faturar. Lutei para ficar desperta e atenta, pois a casualidade das cenas me distraiu. Não consigo lembrar nada da tal conversa com o padre vivido por Mads Mikkelsen (o que ele estava fazendo ali, mesmo?) e talvez tenha percebido um pouco mais a empatia com o médico (deve ser por causa dos olhos de Mathieu Almaric, que têm vida própria!). Enfim, um belo filme, mas que me deixou um certo vazio...
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