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    Ciganos da Ciambra
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Ciganos da Ciambra

    Liberdade selada, destino incerto

    por Rodrigo Torres

    Jonas Carpignano é um verdadeiro cidadão do mundo, e desde bem antes de receber convites para apresentar seus filmes em festivais internacionais. Ele nasceu em Nova York, cresceu em Roma e visitou diversas partes do mundo, inclusive o Rio de Janeiro, onde tem família. Pois é com esse olhar cosmopolita que ele se volta à sua origem, na pobre comuna de Gioia Tauro, Calábria, sul da Itália, para retratar com sensibilidade uma realidade distinta e distante do primeiro mundo que experimentou ao longo da vida: o cotidiano precário dos Ciganos da Ciambra.

    Desde as primeiras cenas, é curioso perceber a profunda identificação entre o pré-indicado da Itália ao Oscar 2018 e as referências natais dos principais produtores do longa-metragem. Jonas Carpignano brinca com o Brasil de Rodrigo Teixeira (em alta após sucessos variados e diversos, como o horror A Bruxa e o romance Me Chame Pelo Seu Nome) ao colocar na boca dos personagens a imagem de um país muito perigoso veiculada internacionalmente por filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite.

    A (triste) ironia reside no fato de a Ciambra ser muito semelhante a uma favela carioca ou outras regiões marginalizadas do Brasil: paupérrima em termos de estrutura física e familiar, formada por uma gente historicamente discriminada, excluída de oportunidades, fadada a um círculo vicioso que só se agrava quando o patriarca ou um filho comete um delito e é preso. A criminalidade como não somente um meio de vida, mas um exemplo de sucesso romantizado por jovens à beira da miséria, é outra coincidência marcante que exarceba o drama de Pio.

    Nesse cenário, Ciganos da Ciambra remonta diretamente à Little Italy da obra de Martin Scorsese — o outro financiador ilustre (e fã) do filme de Jonas Carpignano. Tal como Caminhos Perigosos, por exemplo, La Ciambra (no original) combina signos do cinema de crime e drama social ao narrar um coming of age pervertido por uma vida de marginalidade histórica. Quer dizer: se Pio precisa abandonar a adolescência e usar sua boa relação entre romani, africanos e italianos nativos para abraçar uma vida adulta cheia de riscos, isso se deve à escolha fundamental de seu avô, décadas atrás, quando deixa a liberdade cigana para viver na Itália.

    O peso dessa escolha é ilustrado por um belo prólogo que apresenta o avô de Pio, cigano do norte da África, em um passado de planícies rurais banhadas por rios rasos, tendo apenas o horizonte adiante. É gritante o contraponto desta introdução de planos abertos e fotografia sépia com a captação naturalista dos aposentos amontoados da família Amato. A permanência desse estado de clausura e miséria se reflete no olhar melancólico do progenitor que pouco fala. Quando o faz, o homem idoso verbaliza que lamenta seu encarceramento, que também é de toda sua linhagem, literal e socialmente.

    Assim, quando Pio observa um cavalo andando pelas ruas em uma linda tomada contemplativa, é como se seus olhos jovens tentassem rememorar um passado que jamais viveu, em que pessoas livres como animais selvagens eram a lei natural (segundo a essência nômade de seus ancestrais), e não viver à margem da lei e da sociedade. Da mesma forma, a imagem de um animal perdido em um ambiente estranho reflete o deslocamento do povo cigano na Itália atual.

    Além do registro naturalista, Jonas Carpignano recorre ao cinema direto não somente para imprimir um senso de realidade, como proclamando que aquele cotidiano de fato existe. Os personagens principais têm os nomes reais de seus intérpretes, compõem mesmo aquela família, casa e região da Itália, as crianças fumam de verdade, com tudo isso servindo à ficção justamente pela naturalidade expressa por um elenco amador.

    Apoiado nesses elementos, e em uma câmera tão próxima da nuca de Pio que impõe ao espectador seu ponto de vista destituído de rumos e alertas (o extracampo é um elemento de tensão constante no longa-metragem), o cineasta evoca perfeitamente as sensações de um jovem tão impetuoso quanto temeroso, vítima de uma sociedade que lhe condena a um destino incerto e perigoso. Também por isso, a confusão e a angústia de Pio recaem sobre o público, o que denota a notável capacidade de comoção de Ciganos da Ciambra e seu promitente realizador.

    Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.

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