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    In the Aisles
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    In the Aisles

    O poema das empilhadeiras

    por Bruno Carmelo

    É muito curioso o efeito provocado por esta comédia dramática. Sua sinopse poderia ser resumida em poucas linhas: um rapaz tímido (Franz Rogowski) é contratado em um supermercado para cuidar do estoque de bebidas. Ele aprende a manejar as empilhadeiras, faz alguns amigos, apaixona-se por uma bela mulher casada (Sandra Hüller). Talvez seja só isso. O centro de interesse do projeto, no entanto, vai muito além dos conflitos narrativos. O que surpreende é a maneira como o diretor Thomas Stuber cria poesia através de elementos inesperados – uma empilhadeira, por exemplo.

    Este objeto, que aparece nos pôsteres e na primeira cena, constitui um personagem próprio. Quando desliza pelos corredores, o cineasta enxerga uma coreografia ao som de música clássica. Quando levanta as suas pás para buscar produtos em alguma prateleira alta, o roteiro sugere perigo, medo. Quando o protagonista Christian passa seu teste para operar o veículo, são colocados em risco o seu trabalho, a inserção no círculo de amigos, a possibilidade de encontrar a amada Marion na sessão de doces. Cada objeto, cada momento num banal corredor de supermercado representa um jogo de vida ou morte. O simples torna-se especial.

    Stuber atinge este resultado graças a uma combinação muito precisa de recursos estéticos. A iluminação dos corredores é escura e desagradável – Christian trabalha madrugada adentro – a câmera busca ângulos que sejam ao mesmo tempo estranhos ao ponto de vista de um cliente comum, porém próximos do olhar dos funcionários. A montagem permite as trocas de olhares, os silêncios de desconforto. Os mundos são ressignificados: um tanque de peixes é transformado em oceano, uma lixeira torna-se banquete com tantos alimentos em perfeito estado sendo jogados fora, um cubículo administrativo é improvisado em torneio de xadrez. In the Aisles é movido pela apropriação afetiva de espaços frios e burocráticos.

    Os personagens ajudam muito nesta empreitada. O magnífico Christian tem um passado obscuro, representado por suas grandes tatuagens no corpo, mas se comporta de modo exemplar e introvertido, numa atuação comovente de Franz Rogowski. Marion consegue ser ao mesmo tempo ousada e doce – ela aceita transportar pessoas numa empilhadeira, algo estritamente proibido pelo regulamento – em mais uma composição multifacetada de Sandra Hüller. Esta é uma história de magia sem magia, uma trama sobre um príncipe buscando resgatar uma princesa a bordo de um cavalo branco, exceto pelo fato de que Christian não é príncipe, Marion não é princesa, e o cavalo é uma empilhadeira.

    Com tantas imagens lúdicas, o resultado poderia ser uma obra ingênua, associal, na linha de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Mas In the Aisles jamais abandona o peso da realidade. Estamos falando de profissionais mal pagos, em rotinas extenuantes, divertindo-se ocasionalmente ao furtar algum chocolate do lixo. Stuber evita a piedade, porém mostra-se consciente do valor que aquela pequena magia possui para cada funcionário. A cena em que cada um vai para casa – de carro, bicicleta ou ônibus – em plena madrugada trata de tornar universal a rotina dos protagonistas. Nenhum deles é uma pessoa particularmente bela, especial, inteligente. São comuns, e por isso mesmo universais.

    Comprovando a sua força discretamente, cena após cena, o pequeno filme se revela imenso. Uma história de amores, no sentido geral do termo – incluindo as amizades belas e tristes com o operador Bruno (Peter Kurth), com o bruto Rudi (Andreas Leupold), com a simpática funcionária que tosse enquanto trabalha. In the Aisles representa um raríssimo caso de obra ao mesmo tempo popular e erudita, sonhadora e politizada – pelo retrato realista das profissões não qualificadas, elaborada com senso de originalidade na construção das imagens. Um desses filmes crentes na capacidade do espectador em rever atos banais como pegar uma caixa de cervejas por um ângulo novo, diferente. Mais humano.

    Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.

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    Comentários

    • Marlene Gonzalez
      Maravilhoso! Sensível, no exato sentido do termo! Cada cena uma pequena obra de arte! Enfim, Arte em toda a sua simplicidade!
    • Danil BR
      Desconhecia completamente o filme, mas agora fiquei com vontade de ver!
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