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    Senhorita Maria, a Saia da Montanha
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Senhorita Maria, a Saia da Montanha

    Uma mulher entre os brutos

    por Bruno Carmelo

    No meio onde vive, María Luisa constitui uma exceção. A mulher transexual de 44 anos de idade convive com os habitantes de um minúsculo vilarejo agrícola no vale dos Andes colombianos, onde sofre preconceito desde a infância. Abandonada pela família, vive sozinha, tentando resistir ao deboche, fazendo questão de usar suas roupas femininas e rogando a Deus por dias melhores. Como amigos, tem apenas uma senhora idosa que diz “aguentar” Maria “por caridade”, e um empregador que às vezes utiliza os serviços da fazendeira para arar as suas terras, enquanto tece comentários maldosos sobre seus possíveis namorados.

    Senhorita Maria, a Saia da Montanha investe num terreno espinhoso, expondo uma personagem de grande fragilidade emocional. A resistência da protagonista se faz em silêncio: semianalfabeta e pobre, ela sequer possui ferramentas políticas para lutar de modo efetivo contra o preconceito. Sua vida inteira foi marcada pelo desprezo, e nada indica que esta configuração esteja prestes de mudar. Nestas circunstâncias, a aproximação do diretor Rubén Mendoza carrega uma responsabilidade moral e ética importante. Como o cineasta encontrou Maria, de que maneira propôs fazer o filme? Ela aceitou falar sobre tudo, deixar-se filmar em todos os momentos?

    Na ausência de respostas, o espectador se confronta com um olhar fragmentado. Por um lado, o cineasta demonstra apuro técnico e respeito quando registra Maria: ela é vista inicialmente por seus trejeitos femininos, por sua saia e pelos cabelos longos, enquanto anda de costas pela floresta. Mendoza sabe tratá-la primeiro como mulher do que como transexual, primeiro como uma agricultora do que como personagem resumida à sua identidade de gênero. Munido de poucos recursos técnicos, extrai grande beleza de cada enquadramento, trabalhando com minúcia as luzes fracas do amanhecer e entardecer, além de criar um ambiente seguro o suficiente para que a personagem exponha suas dores com uma cumplicidade e franqueza impressionantes.

    Por outro lado, a cada momento em que o diretor lança alguma pergunta a Maria, ele o faz de modo brusco e grosseiro. Quando a protagonista afirma esperar que Deus venha para alterar o seu corpo, o diretor responde: “Você sabe que é improvável que Deus vire cirurgião, não é?”, num deboche imperdoável. Quando conversa com os habitantes da região, menciona Maria às vezes pelo pronome masculino, e no momento em que se depara com uma crise convulsiva da agricultora, prefere filmá-la durante alguns instantes antes de ajudá-la. Isso sem falar nas perguntas grosseiras, diretas: “O que você sente por ter nascido no corpo de um homem?”. Mendoza carece de tato, de sensibilidade, afrontado sua entrevistada como num interrogatório. O diretor jamais abandona sua posição hierárquica inerente ao fato de controlar a sua imagem e sua história.

    Este constitui o problema do documentário: a presença de um olhar piedoso e fetichista, ao invés de empático. Maria é vista à distância, ganhando pouca oportunidade de se impor nas imagens para além da confissão quase religiosa a que se livra. Ao invés de empoderá-la, de lhe conferir protagonismo, Mendoza aborda Maria como um objeto fílmico, uma figura de exceção, uma presença exótica. O evidente refinamento estético de A Saia da Montanha não o livra da instrumentalização e do paternalismo em relação ao tema.

    Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.

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