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    Lamparina da Aurora
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Lamparina da Aurora

    O labirinto dos corpos

    por Bruno Carmelo

    Lamparina da Aurora é um filme de fantasmas. Talvez não no sentido estrito do termo, afinal, os corpos sangram, transpiram, fazem sexo. Mas esta é uma história de espectros, de pessoas sem nome, sem fala, sem vontades. Os três únicos personagens em cena convivem sem se tocar, sofrem sem emitir sons, se ferem sem que o espectador veja as feridas. Eles são atormentados por uma presença possivelmente assassina, mas após o sufocamento, se levantam e seguem em vida. O homem idoso (Buda Lira), a mulher idosa (Vera Barreto Leite) e o forasteiro (Antônio Saboia) são como gatos de Schrödinger, vivos e mortos ao mesmo tempo.

    Seria tentador dizer que se trata de pai, mãe e filho, pelas idades e pela presença na mesma casa, mas nada confirma os laços de parentesco. A trama também investe em outras figuras de tríade, como a Santíssima Trindade. Essas possibilidades permanecem no domínio da sugestão. O diretor Frederico Machado faz questão de retirar elementos que poderiam construir a psicologia dos personagens, seus passados, seus objetivos. Eles são reduzidos a corpos que agridem e sofrem, mãos e pés enquadrados com calma, rostos que se encaram e torsos que afundam nas folhas secas ou nas banheiras.

    O cineasta aposta numa mise en scène avessa à narratividade. Talvez exista uma microscópica linha condutora através deste pesadelo. No entanto, sobressai a ideia de um exercício posado, uma performance ao invés de uma história. A câmera quase nunca se move, nem os personagens. Eles ficam imóveis em pontos específicos do enquadramento, recebendo estímulos do meio ao redor, encarando a câmera ou esperando o efeito do tempo na imagem e, por consequência, no espectador. Machado resgata a ideia do cinema como arte de fixar um momento, uma pessoa em determinado instante. Lamparina da Aurora se assemelha a um sombrio álbum de retratos.

    Em termos de gênero, estamos próximos do suspense, ou mesmo do terror, embora esta insinuação dependa demais da trilha sonora para se construir. Se não fossem os pesados acordes musicais, o registro imagético se passaria por um drama existencialista. O projeto pode estar em busca da mínima linguagem capaz de produzir significado e estabelecer comunicação. O diretor havia produzido obras austeras como O Exercício do Caos e O Signo das Tetas, mas agora dá um passo além, como se interrogasse a si mesmo e ao espectador: qual é a mínima construção necessária para que um personagem seja considerado como tal? O mínimo de história possível para o espectador acompanhar as imagens?

    O resultado será hermético demais para o espectador médio, mas o filme nunca procura este público. Alguns elementos produzem efeitos interessantes, como a narrativa enérgica contrastada à imagem letárgica, ou a breve imagem caleidoscópica que, infelizmente, não se repete. Lamparina da Aurora se desenrola em nível constante de insinuação. Ele sugere perigo, morte, crise da família, circularidade do tempo, desejos incestuosos, vingança, efeito da natureza, peso da religião, isolamento da sociedade, decadência dos corpos, incomunicabilidade, consequência dos segredos, fatalidade familiar. Todas essas leituras seriam possíveis, além de muitas outras. Esta é a riqueza e também a fragilidade do projeto: ele sugere caminhos demais sem guiar seu espectador para leituras possíveis. Ficamos perdidos num labirinto orgulhosamente ostentado como tal.

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