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    Corpo Delito
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Corpo Delito

    As grades invisíveis

    por Taiani Mendes

    Ivan Silva está livre, mas não está. Preso em regime semiaberto, não consegue ser feliz sob a vigilância e bipes constantes da tornozeleira eletrônica – que chama de pulseira. Marrento, malandro, cheio de frases fortes e personalíssimas no repertório e bastante confortável diante da câmera, Ivan é um achado do diretor Pedro Rocha que potencializa a força do documentário Corpo Delito. O nome pode vir da forma como “corpo de delito” é popularmente falado e também da ideia de corpo carregado de infração, julgado culpado mesmo sem fazer nada, unicamente por suas características.

    Com o desafio de fazer o público superar barreiras autoimpostas e se interessar por esse homem que cometeu um crime, olhando-o como pessoa e não bandido, e, no melhor dos mundos, compreendendo seu incômodo, o diretor estreante usa a limitação espacial (Ivan não pode sair de casa) a seu favor como ferramenta de criação de intimidade. Compartilhamos sua cama, ouvimos suas conversas, deciframos seu dialeto e testemunhamos as frequentes mudanças de sensação do conforto para a inquietude. Em comparação com a cadeia lotada e o trabalho mecânico na fábrica, é ótimo estar no conforto do lar vendo o jogo do Corinthians, mas aí surge um amigo e comenta das festas, da pista, e o só poder estar ali logo perde todo o encanto e assume caráter de castigo.

    Enquadrados nos cantos da tela numa referência à posição marginalizada em que são colocados pela sociedade, os moradores da Favela dos Índios, em Fortaleza, interpretam a si mesmos às vezes com naturalidade, às vezes com exibicionismo, às vezes com vergonha, mas sempre com uma verdade bem direcionada pelo roteiro de Diego Hoefel. Não há preocupação excessiva com a composição de planos impecáveis e o registro é de observação próxima, porém discreta. O cinza do concreto prisional é a cor dominante e o som da televisão responsável pela distração de Ivan é utilizado sem economia, o que aumenta a impressão de passividade que tanto o aflige. O celular sempre à mão é mais um escape.

    Guardada a oposição gritante no que tange à importância e valorização da mulher no contexto, Corpo Delito assemelha-se a Baronesa, outro exemplar recente do documentário híbrido focado em moradores de comunidade carente que não escondem suas ligações criminosas. No entanto, enquanto lá a diretora Juliana Antunes não teme expor seus personagens usando drogas e manipulando armas, aqui Pedro opta por diferente tipo de abordagem, igualmente questionável, mas longe do condenável.

    Ivan é protagonista competente, mas não insubstituível, e quando toma um caminho que o diretor decide não acompanhar, seu lugar de destaque na narrativa é prontamente ocupado por Neto. A transição se dá de maneira natural e o retrato desse rapaz, fã de roupas de marca que teve um único trabalho na vida e acha que foi o suficiente, enriquece a discussão proposta pelo longa-metragem. Qual é o seu lugar?

    O registro do penteado novo é como um mugshot. Livre, Neto sai, mas não se integra ou é acolhido pela sociedade. Dança só na balada, é revistado pela polícia no meio do bloco de Carnaval (melhor sequência do longa, em que as mãos na cabeça dos “escolhidos” para a batida se mistura à coreografia da "Dança do Vampiro", do Asa de Águia) e ouvido fora de seu círculo apenas quando notado como consumidor.

    Jovem, periférico e desempregado, tem sua posição “de risco” representada na cena em que é mostrado parado em silêncio com um amigo nos trilhos do trem. A qualquer momento esses garotos podem ser "atropelados" pela polícia, por julgamentos, por olhares preconceituosos, pela morte precoce. Complementando esse panorama há a voz das mães. A de Ivan, cujo desconforto diante da câmera serve perfeitamente ao discurso desconfiado sobre a recuperação do filho e ao mesmo tempo zeloso; a de Neto, que o incentiva com carinho a tomar jeito e crescer; e uma outra que perdeu o filho e representa todas as relações do tipo ao chorar diante do túmulo lembrando o quanto ele a fez sofrer e alegrou. Não existe reação certa ou errada.

    Contando com uma longa cena final que contextualiza geograficamente, isola os personagens e indica o céu como limite – ou destino –, Corpo Delito não apresenta futuro esperançoso para o homem periférico estigmatizado, mas simultaneamente tenta reverter esse quadro promovendo a aproximação do espectador de tais figuras, configurando um convite à empatia com energia silenciosa motivadora de transformação.

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