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    O Amante Duplo
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Amante Duplo

    Os belos manipuladores

    por Bruno Carmelo

    Chloé (Marine Vacth) e Paul (Jérémie Renier) são paciente e terapeuta. Ela conta seus traumas de relacionamentos anteriores, e talvez flerte um pouco enquanto narra as histórias. Ele escuta com grande profissionalismo, mas um ou outro sorriso indicam que gosta do flerte. Transferências paciente-terapeuta à parte, eles se apaixonam, e logo o processo precisa ser interrompido por questões éticas. Sessões de análise costumam ser bastante tediosas no cinema, mas o espectador dificilmente encontrará trocas verbais tão dinâmicas e inventivas quanto em O Amante Duplo. O diretor François Ozon experimenta praticamente todas as possibilidades de ângulos, composições, som fora de quadro, perfis de rostos colados digitalmente na mesma imagem. Percebe-se o gosto pelas distorções e pela representação não realista dos relacionamentos.

    Mas este é apenas o princípio: partindo de uma obra literária com gosto de banca de jornal, em estilo sensacionalista, Ozon se delicia no campo das sugestões visuais. Chloé encontra pela cidade outro homem idêntico ao novo namorado, porém Paul afirma jamais ter estado neste local, e diz não possuir um irmão gêmeo. Ora, então Paul está mentindo? Ou Chloé está alucinando? O roteiro se leva bastante a sério na construção do texto, mas força as situações e as analogias ao limite do cômico, como convém ao diretor francês, que jamais faz as coisas pela metade. Prepare-se para situações desconcertantes envolvendo um gato desaparecido, um corte de cabelo, uma garota doente e uma câmera dentro da vagina.

    O principal mérito deste filme se encontra em sua coragem. A premissa pode soar pouco verossímil, porém a equipe reveste as imagens de uma atmosfera de pesadelo/delírio que convém muito bem à ambiguidade dos conflitos. O espaço da galeria de arte, onde Chloé trabalha, é magnificamente bem filmado e explorado como metáfora de seu estado mental, enquanto os reflexos de espelhos ou outras alegorias do duplo são utilizadas ao limite da exaustão. Embora Paul seja o “homem duplicado” inicial, a narrativa encontra novas ideias de cópia com outros personagens e outros espaços. Temos cópias espelhadas (simetricamente opostas), cópias idênticas, falsificações, cópias tentando se passar pelo original. O dispositivo vai muito, muito longe. Tudo é feito para convidar o espectador ao jogo de adivinhações: isso é real ou fantasia? Ela é uma manipuladora, ou o manipulador é ele?

    Por esta multiplicação insana de recursos, temos a impressão de um diretor com amplo domínio da linguagem cinematográfica e sem preocupação em desagradar. Esta franqueza quase juvenil na criação de imagens se transmite aos atores. Vacth está excelente na construção de olhares e na evolução corporal, entre a retração e liberação, enquanto Jérémie Renier se sai muitíssimo bem na dupla de opostos - um homem misterioso e o outro transparente, ou ainda um passivo e o outro ativo até demais. Talvez o homem perfeito para Chloé fosse a junção de ambos, algo que permanece, evidentemente, no domínio da idealização. Neste mundo com praticamente dois únicos atores em cena o tempo inteiro, ainda há espaço para Jacqueline BissetMyriam Boyer representarem novas formas de perigo ao casal.

    A teia de provocações entre os três (Chloé e os amantes duplos) é tão instigante que a resolução do conflito talvez soe rocambolesca demais para alguns espectadores. Outros podem reclamar do excesso de simbologias. No entanto, dentro de um universo fantástico e kitsch, quando é possível dizer que passamos à saturação? A saturação não seria o próprio modus operandi da estética de filme B? Talvez o limite dependa muito de cada espectador. O fato é que, explorando uma premissa gasta e recursos clássicos (imagens no espelho, falsidade ideológica), Ozon atinge um desdobramento intenso e inesperado. O Amante Duplo pode despertar amores e rejeições, mas não deve deixar o espectador indiferente. O cinema é muito mais interessante quando se arrisca do que quando permanece nos limites do bom gosto.

    Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês, em junho de 2018.

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    Comentários

    • Uxcell Conserto de Smartphones
      acho que a critica acima reflete bem o que é o filme. Talvez um pouco longo, não chega a cansar porém não suscita o interesse em rever o filme. Muito bem filmado realmente. Indico
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