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    Máquinas
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Máquinas

    A exploração do homem pelo homem

    por Bruno Carmelo

    “Em caso de flexibilização das leis do trabalho, o trabalhador pode negociar diretamente com o patrão o seu salário e sua jornada, adequando-os às suas necessidades. A jornada de trabalho de 12 horas é benéfica tanto ao empregador quanto aos empregados”. Os brasileiros têm ouvido com frequência este discurso por parte do atual governo e da mídia controlada por grandes empresários. A ideia de que ambos os lados da cadeia trabalhista possuem o mesmo poder de negociação é brilhantemente destruída por argumentos como os apresentados no documentário Máquinas, de Rahul Jain.

    O projeto não vem do Brasil, e sim da Índia – país com o qual dividimos a história de crescimento econômico acelerado, acompanhado do acréscimo da desigualdade social. Numa gigantesca usina têxtil, centenas de trabalhadores efetuam jornadas de doze horas (ou 24 horas, ou ainda 36 horas) controlando máquinas pesadas que criam tecidos vendidos a preço de ouro no mercado. O ponto de vista situa-se ao lado dos trabalhadores: sem qualquer forma de narração, a câmera segue a jornada dos indianos pelo local insalubre e escuro, carregando toneladas de tecido, dormindo diante dos aparelhos, sem direito a pausa para descanso, férias ou repouso nos feriados.

    As imagens são construídas através da direção de fotografia mais cuidadosa que o cinema documentário produziu em muito tempo. É impressionante como Rodrigo Trejo Villanueva consegue aproveitar os pequenos feixes de luz vindos do teto para desenhar perfeitamente os corpos, os tecidos em suas máquinas, os deslocamentos no espaço. Os longos planos-sequência traçam uma coreografia tão realista quanto absurda, transformando a usina numa espécie de labirinto infinito no qual os homens são forçados a transitar, desde crianças, e de onde não devem sair tão cedo. Por mais amplo que seja o local, a sensação de clausura e a falta de liberdade – muitos dos empregados são forçados a trabalharem para pagarem dívidas – remete à prisão.

    Politicamente, Máquinas toma a precaução de escutar pontos de vista distintos. Sem esconder o discurso contrário à escravidão contemporânea, Rahul Jain ouve alguns trabalhadores defenderem as longas jornadas como parte de uma missão divina, outros se revoltarem contra a exploração, e outros ainda reconhecerem o absurdo de suas condições, porém desconhecem uma maneira de mudá-la. Jain ainda ouve líderes sindicais e os diretores da empresa, estes últimos reproduzindo o discurso mais preconceituoso possível. De acordo com o proprietário da usina, os salários baixos se justificam porque os trabalhadores “gastariam tudo em cigarro”, “não cuidam da família de verdade”, e de qualquer modo, “ganham dez vezes mais do que alguns anos atrás”. Ou seja, a pobreza seria questão de meritocracia. Enquanto isso, os homens do lado de fora das construções gigantescas buscam alimentos no lixo.

    O mais interessante do projeto é a ideologia construída não pelo grito verbal, por frases de efeito visando sensibilizar o espectador, e sim por escolhas estéticas. Os enquadramentos, o ritmo, as imagens são políticos em si. A fotografia reforça o suor dos corpos e equipara os homens às máquinas, o plano-sequência emula a jornada ininterrupta dentro da usina, e quando Jain conversa com o patrão, a luz cuidadosíssima cede espaço à iluminação mais feia e padronizada possível. Sim, este filme toma partido, e o faz esteticamente. Aliás, o mais chocante seria não tomar partido, não se incomodar com a estrutura retratada em imagens.

    Para completar a digressão sobre o fracasso da economia liberal, Máquinas permite que os entrevistados questionem a responsabilidade do próprio cineasta neste projeto: de que adiantaria Rahul Jain captar tudo aquilo se depois ele voltaria para a sua casa confortável, enquanto os trabalhadores continuariam em situação precária? De que maneira a atenção do filme seria diferente daquela, falsa, apresentadas por políticos em tempos de eleição? O filme deixa a reflexão no ar, lembrando tacitamente o papel da arte em sensibilizar, revelar, representar a realidade e produzir um debate a partir do mundo que nos cerca.

    Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.

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