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    Cidade de Fantasmas
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Cidade de Fantasmas

    Reflexos da guerra

    por Francisco Russo

    Se desde o fatídico atentado de 11 de setembro de 2001 o mundo passou ter outros olhos para a comunidade muçulmana, fato é que o Estado Islâmico é uma entidade relativamente nova dentro desta dinâmica. Em ascensão desde a Primavera Árabe, o EI (ou ISIS, como é conhecido internacionalmente) apenas ganhou projeção maior quando passou a também orquestrar ataques ao mundo ocidental - isto com a Síria em brutal guerra civil já há cinco anos, é bom lembrar. O receio do novo inimigo aliado à barbárie de seus atos fez com que a mídia em geral buscasse mais informações sobre o tema, com uma profunda dificuldade devido ao desconhecimento sobre o panorama local. Pois foi um documentarista, o americano Matthew Heineman, quem traz agora um aprofundado e contundente relato sobre o que é, como surgiu e quais são os objetivos do Estado Islâmico.

    Heineman, vale lembrar, não é um novato no meio. Diretor do excepcional Cartel Land, pelo qual foi indicado ao Oscar, ele arriscou a própria pele ao esmiuçar o violento interior do México de forma a desnudar a relação entre os cartéis de drogas e um grupo de vigilantes, criado para combatê-los devido à ineficiência do poder público. Tal dinâmica de poder, com um grupo subjugando o outro, se repete no preâmbulo de City of Ghosts, com consequências bem mais desastrosas. Afinal de contas, a esperança em conquistar a liberdade ao destronar o presidente da Síria, no poder há mais de uma década e que sucedeu o próprio pai - que, por sua vez, governou por 30 anos - fez com que ascendesse um grupo ainda mais radical, que não tem o menor receio em torturar e matar pessoas para atingir seus objetivos. Pelo contrário: o Estado Islâmico faz questão de divulgar suas atrocidades através da internet.

    É neste aspecto que está a grande chave para compreender o método de funcionamento do EI, mais uma vez desnudada pelo diretor, agora com o apoio dos mais antigos oponentes da organização: o RBSS (Raqqa is Being Slaughtered Silently, ou Raqqa Está Sendo Morto em Silêncio). Nascido na cidade de Raqqa, berço do Estado Islâmico, o grupo formado por cidadãos locais tem por objetivo desnudar os atos do EI de forma a libertar a população de seu jugo. Para tanto, conta com pessoas infiltradas na cidade de forma a transmitir notícias e também promover atos contra a organização, ao mesmo tempo em que outros instalados fora da Síria assumem a tarefa de difundir as atrocidades cometidas, no intuito de conquistar apoio internacional. Assim como acontece com os Capacetes Brancos, que também atuam na Síria, o RBSS é uma organização civil voluntária nascida em meio ao caos, destinada a lutar pelos direitos dos cidadãos sem ter qualquer obrigação neste sentido - e isto, ideologicamente, faz muita diferença.

    Toda esta ambientação é apresentada em detalhes no terço inicial de City of Ghosts, com direito a fortes imagens gravadas em Raqqa e trechos de execuções cometidas pelo Estado Islâmico. É também a partir daí que nasce a elaborada propaganda de guerra, que bebe diretamente da fonte do cinema de ação hollywoodiano. Com profissionais contratados com este objetivo, todo e qualquer vídeo do EI passa a contar com efeitos especiais, enquadramentos e truques de edição de forma que o torne o mais dinâmico possível. A ideia é, com esta linguagem, seduzir os jovens que já estão habituados - e curtem - tal formato para que sejam abduzidos para a ideologia da organização. "Se você joga assim na internet, não teria coragem de jogar na vida real?", questiona, com propriedade, um dos integrantes do RBSS. O que, é claro, desperta de imediato questionamentos sobre a cultura armamentista e de sedução pela violência tão explorada pela indústria do entretenimento, mundo afora.

    Por mais preciso e explicativo que seja sobre as repercussões da Primavera Árabe na Síria, City of Ghosts brilha mais intensamente quando passa a acompanhar de perto os integrantes do RBSS. Não apenas pelo forte laço ideológico que move seus atos, mas especialmente pelo lado humano capturado. Afinal de contas, mais do que combatentes do Estado Islâmico ou defensores da liberdade para sua cidade-natal, ali estão pessoas que tiveram suas vidas marcadas para sempre e que precisam, cada uma à sua maneira, lidar com a inevitável tensão inerente aos seus atos. Há nelas uma dose maciça de sacrifício consentido em nome de um bem maior, sem ter a menor certeza de que um dia ele virá. A sensação de fazer o certo, o necessário, é suficiente - e tocante, especialmente nos momentos mais criticos vivenciados por cada um.

    Assim como em Cartel Land, Matthew Heineman mais uma vez apresenta um painel complexo que, além de desnudar o foco principal, ainda levanta tão variadas questões pertinentes. Como, por exemplo, a ascensão de movimentos direitistas na Europa como revide à presença de refugiados ou até mesmo o porquê da guerra civil na Síria ter sido invisível por tanto tempo - questões que, se o filme não aprofunda tanto, é também para que o espectador as analise por conta própria. Tudo com o essencial apoio e cumplicidade dos integrantes do RBSS, que permitiram o livre acesso do diretor e equipe às suas atividades corriqueiras.

    Talvez City of Ghosts não seja tão surpreendente quanto Cartel Land, mas com certeza trata-se de um belíssimo trabalho de um diretor que já demonstrou não ter receio de temas complexos, independente das dificuldades que tragam. Com uma edição dinâmica e ágil, superando o empecilho narrativo de muitos acontecimentos serem através de aparelhos eletrônicos, City of Ghosts é não só uma didática explicação sobre o Estado Islâmico como também um libelo à dedicação de pessoas a uma causa, sem ter a menor obrigação para tanto que não seja sua própria consciência. Um filme importante e necessário, tanto pelo lado histórico quanto pelo humano.

    Filme visto no CPH:DOX, em março de 2017.

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