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    O Orgulho
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    O Orgulho

    A sujeição

    por Taiani Mendes

    Na semana em que a seleção francesa, louvada por sua diversidade étnica, conquistou o título da Copa do Mundo, chega aos cinemas brasileiros O Orgulho, que trata justamente da tensão entre franceses conservadores e racistas e a nova geração nascida no país, filha de imigrantes. A protagonista da trama dirigida por Yvan Attal (Ma Femme est une Actrice) é Neïla Salah (Camélia Jordana, cheia de energia), descendente de argelinos, moradora de uma espécie de conjunto habitacional, estudante de Direito. Em seu primeiro dia na universidade ela quase é barrada na portaria por seus traços e trajes e, entrando em sala, torna-se alvo de ataques gratuitos por parte do professor Pierre Mazard (o veterano Daniel Auteuil). A turma reage de diferentes maneiras, mas em resumo a aula-show é o mestre despejando impropérios, a jovem argumentando e algumas testemunhas gravando tudo em vídeo.

    Na boa representação do mundo contemporâneo que o cineasta faz, os registros vão parar na internet e o professor, que não agiu de tal forma pela primeira vez, tem a cabeça exigida. Uma provável saída, porém, é encontrada justamente em Neïla, caloura que ele deve orientar para provar ao conselho que é um homem mudado, livre de preconceitos. Sem saber das segundas intenções, a jovem começa a trabalhar com aquele que a destratou e ambos acabam tendo que esfriar seus brios (Le Brio é o título original) em troca do objetivo em comum: a vitória no concurso universitário de retórica.

    Olhando por alto, parece uma história bonita, inspiradora e eventualmente até emocionante de superação de diferenças, abertura à alteridade, troca de conhecimento, quase uma campanha em prol do multiculturalismo. Analisando mais atentamente a trama desenvolvida a partir de roteiro assinado por Attal e mais quatro pessoas, no entanto, é notório que o que ocorre é a subordinação de Neïla aos valores da velha França.

    Inicialmente rebelde, falando o que pensa, vestida de maneira confortável, ouvinte de hip-hop, do tipo que não leva desaforo para casa, ela aos poucos vai se submetendo mais e mais aos desmandos de Pierre, mudando de roupas, domando os cabelos e se afastando dos vizinhos menos estudiosos. Ela abre mão de uma série de coisas em troca do avanço na tal competição, para qual sua universidade nunca havia mandado uma descendente de árabe, e a grande mudança na vida de Pierre é... não trata-la tão mal. Certamente para os seguidores de Marine Le Pen e eleitores da direita é um enorme passo que ele dá, dedicando minutos de seu dia a compartilhar conhecimento com uma filha de argelinos e preparando-a para derrubar franceses ricos e caucasianos usando o melhor da oratória a partir de Schopenhauer. Em verdade, porém, o único orgulho amaciado é o da garota, que por vezes parece presa em um relacionamento abusivo com o mentor.

    É possível, por outro lado, julgar as atitudes de Neïla como decisões conscientes em busca de uma ascensão mais rápida na carreira, a tal estratégia de vencer o inimigo com simpatia. Numa conversa com a mãe (em que curiosamente os trechos em árabe não são traduzidos), ela diz que os antigos aceitavam qualquer coisa, ao passo que a matriarca responde que os jovens estão errados em reclamar de tudo. A resiliente estudante não é burra e logo percebe que é não se exaltando, fazendo exatamente o que é ordenada e buscando se encaixar nos padrões que seus objetivos serão alcançados. Assim sendo, abaixa a cabeça para acessar a ampla oferta de conhecimento do intelectual europeu, algo de valor em seu universo. O problemão da responsabilidade por tudo é jogado no colo da sociedade, portanto, que exige a perda da personalidade e reconhece sempre o mesmo modelo, forçando a sujeição daqueles que ambicionam grandes feitos. Dessa maneira orientador e orientanda se usam e até Pierre sai como mocinho, um provocador incompreendido, apegado a paradoxos, não preconceitos.

    O lema do indigesto filme é que não importa a verdade, mas sim a persuasão, e de fato Attal isso atinge, convencendo o espectador de que ambos se deram bem ao final - segundo as noções questionáveis de sucesso do realizador. O embate retratado de maneira mais detalhada é principalmente uma derrota por desclassificação de um babaca, não uma vitória por mérito de Neïla, e toda a competição passa num golpe de montagem, como se fosse pouco importante ouvir os discursos daquela mulher.

    Decepcionante é a forma mais leve de descrever o desespero quando a futura advogada corre contra o relógio pois supostamente ainda dá tempo de vencer e na verdade acaba restrita a uma nova prova de altruísmo apenas. Pensamento em terceiros que ela não chega a demonstrar na hora de ignorar todos os erros de Pierre ao chamá-lo de extraordinário só por ajudá-la. Não entrarei na discussão da validade da segunda chance, pois o longa sequer chega a construir alguma reflexão do tipo, um arco redentor.

    Pululam falácias, como a trama ser algo exemplar e edificante. No mundo do “aguentar é preciso”, a lição é se submeter ou fingir que aceita, fingir que entende, fingir que admira. Se enganando todos avançam, se suportando sem nenhuma necessidade de mudança por parte de quem tem os privilégios. A fórmula do crescimento social superando as barreiras xenófobas é passada e logo o oprimido vira opressor, espalhando entre os seus o que aprendeu com o homem branco, as regras de sobrevivência e encaixe numa sociedade doentia. Não há do que sorrir, boa sorte em se orgulhar.

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    Comentários

    • Mariana Schleder Rheinheimer
      Obrigada por essa crítica! Assisti o filme nesse fim de semana passado e por mais que a parte da retórica e da preocupação com o bom texto/boa fala sejam algo positivo, saí do cinema com a sensação de que algo estava errado. Também vale lembrar que o próprio Schopenhauer não enxergava o texto Como Vencer um Debate Sem Ter Razão como um texto necessariamente positivo, mas sim como uma certa sátira da época. Uma cena que acho que dialoga com teu início e que pra mim me chocou foi a do final, a personagem aparecendo com os cabelos alisados. Parece tão simples, mas para mi é bem simbólico desse apagamento da identidade e afrancesamento. Assim como colocar que a justiça seria feita pelo rapaz preso se ele se comportasse bem e não se o caso dele fosse julgado de fato. Se a gente comparar (com todos os cuidados necessários) com a justiça brasileira e o encarceramento em massa, onde boa parte dos presos sequer tem uma sentença de fato, vale questionar essa ideia da boa imagem. Tua crítica foi a única que li até agora que questiona as relações de poder no filme e lendo ela consegui lembrar de outras mais: por que será que no metrô um senhor branco francês citando Brutus é respeitado, mas uma mulher, negra, imigrante não? Qual o limite de uma crítica quando ela é dita de forma a destruir uma pessoa? Curiosamente assisti esses dias ao stand up Nanette, que está sendo basante discutido na internet, e me lembrei da parte em que a Hannah comenta a importância da forma como contamos a história e qual parte daremos mais evidência. Fico pensando nisso quando lembro desse filme e como tem todo um perfil de pessoas que defendem que era uma relação de colaboração entre os dois personagens, não vendo as tramas de relações de poder e opressão historicamente colocadas. Parabéns pela tua escrita e que continue assim tão crítica. São essas análises que mantém a gente acreditando na boa crítica, que não se curva apenas a aparência.
    • Juan Da Silva
      Péssima crítica, o filme é ótimo.
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