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    Cafarnaum
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Cafarnaum

    Os miseráveis

    por Bruno Carmelo

    É fácil para o público se identificar com o personagem principal deste drama. Zain, doze anos de idade, vive num cortiço com a mãe, o pai e vários irmãos menores. É ele quem cuida das crianças pequenas, enquanto trabalha numa mercearia. Um dia, por oposição ao casamento forçado da irmã de onze anos de idade, abandona o lar e descobre um mundo ainda mais difícil, dormindo nas ruas, encontrando refugiados e cuidando sozinho do bebê dos outros. Capharnaum desenvolve a longa jornada de sobrevivência de um garoto de temperamento forte e maturidade inesperada para a idade.

    Felizmente, o filme conta com protagonista excepcional. Zain Al Rafeea é uma criança de gestos fortes, grande desenvoltura diante das câmeras, capaz de interpretar planos ininterruptos com longos diálogos e conduzir momentos de explosão emocional com facilidade. Ele consegue falar tanto com sotaque libanês quando sírio. A diretora Nadine Labaki confia muito no ator, em quem aproxima a câmera durante a grande maioria das cenas. Como o mundo é visto pelos olhos da criança, precisamos confiar nas atitudes impulsivas de Zain. Al Rafeea não tem dificuldade em desempenhar esta tarefa.

    Os aspectos técnicos contribuem bastante ao resultado. A montagem, em especial, opta por planos curtos e muito bem entrelaçados, reforçando a dinâmica desta bagunça (significado da palavra “capharnaum”) e impedindo o melodrama intenso – ao menos durante boa parte da trama. Quando alguma notícia ruim chega ao pequeno Zain, a montagem corta imediatamente, busca os olhares das ruas, o barulho dos carros, de outras pessoas gritando, dos bebês chorando. O universo bruto é bem desenvolvido pelo ritmo ágil da câmera e pela fotografia bem desenhada, trabalhando os raios de sol enquanto a câmera na mão só treme exageradamente nos momentos de desespero (fuga, perseguição). Para inserir a pobreza de Zain num contexto mais amplo, drones se elevam às alturas, revelando que para todos os lados, o garoto encontrará as mesmas dificuldades.

    Diante de uma obra tão bem orquestrada tecnicamente e narrativamente, apenas a visão de mundo incomoda. Capharnaum é um ótimo drama de personagens, oferecendo uma eficaz constatação da miséria, no melhor estilo cinema-verdade. No entanto, limita-se à observação crua dos problemas. Em momento algum o filme busca entender de onde vêm os conflitos, com que esferas institucionais se relacionam, de que maneira poderiam se desenvolver. Os ricos não existem neste mundo de miseráveis, composto por crianças famintas, bebês abandonados, refugiados escapando da polícia e pequenos comerciantes praticando tráfico de pessoas. O olhar poderia ser taxado de conformista. Ele busca a evidente sensibilização do público, mas caso este realmente se engaje com as trajetórias humanas em tela, o que fazer com este sentimento de revolta?

    A narrativa condensa seus conflitos num último terço fortemente sentimental. As lágrimas evitadas até então correm soltas no rosto da maior parte dos personagens, a trilha sonora de pianos e violinos invade as cenas, as câmeras lentas reforçam a dor de uma mãe no meio da rua, a promessa de tragédia se concretiza. Dentro do cinema, muitas pessoas estavam em lágrimas – e como não estar? Capharnaum apela aos sentimentos, à empatia humana, a uma espécie de olhar exótico a uma realidade distante do público médio do cinema, a quem o filme estende a mão. No final, o espectador tem a catarse prometida, sai de “alma lavada”, como diria o conhecimento popular, e com a consciência tranquila por ter compartilhado durante duas horas o drama daquelas pessoas. Enquanto projeto político, no entanto, o discurso é retórico: ele apela a bons sentimentos, à evidência da alteridade. Depois, fecha-se em si mesmo, não aponta horizonte algum.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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    Comentários

    • Gerson Chagas
      Onde estão os ricos ? Ora, onde sempre estiveram, no andar de cima, arquitetando suas estratégias de dominação, ampliação e perpetuação de riqueza e poder, subjugando a desgraçada maioria, cujo sofrimento vai sendo cada vez mais banalizado e tratado de maneira protocolar pelos algoritmos dos cartéis empresariais e seus asseclas midiáticos e políticos. Ainda bem que a Arte, com sua luz de sensibilidade e empatia, é capaz de lançar seu grito de indignação, seu gesto de inconformismo e seu sonho de redenção. Triste são os estetas do servilismo e resignação, como se vê nesse texto.
    • Eugenio C.
      O tom político panfletário do final, com ataque aos direitos reprodutivos dos pobres, e a maturidade e malícia improváveis do protagonista acabam com toda verossimilhança da história.
    • DE Almeida D
      filme muito bom, o garotinho trabalhou muito bem, cheguei a me emocionar,triste como o ser humano só tem valor em dollar
    • Felipe Andrade
      Meu Deus, por que tanto sofrimento na Terra? Fome, miséria, sede, falta de saneamento básico, indiferença, maus tratos, tráfico humano e falta de amor.A história do menino de bom coração que cuidava de sua irmãzinha, como se cuida de um filhinho. O menino que deu de comer e de beber a Deus. O menino que discernia bem o bem do mal, porque a vida o esmagou. Um menino bom que fez o mal, por causa da perversidade dos homens, inclusive de seus pais.Este menino processa os pais por ter nascido. Ele os processa para que não tenham mais filhos num mundo amaldiçoado.
    • Matheus
      A constatação de que o filme não dá um horizonte sobre os problemas apresentados me parece ser recorrente entre os críticos. Porém, eu pergunto: quem tem a solução? Não é demais esperar isso de um filme?Para mim, o filme não funciona apenas por mostrar, dar existência a uma população miserável, esquecida, e que é vista meramente como imigrante, sobretudo em países europeus - embora possamos traçar um paralelo com refugiados de outros povos também; o filme funciona também como um drama familiar vivenciado pelo protagonista, que tem uma atuação de destaque. O filme é bom.
    • Milton R.
      E um filme Arrebatador, esfrega na sua cara ,como vive as pessoas do submundo, que não esta muito longe da gente, a interpretação do garoto, e excepcional, sensível e ao mesmo tempo forte. Parabéns a Nadine, que teve a coragem de mostrar que os Miseraveis ainda são atuais, e esta em qualquer pais, Um filme imperdivel, uns dosmelhores que assistir nesta temporada.
    • Roberto
      Enquanto projeto político, no entanto, o discurso é retórico: ele apela a bons sentimentos, à evidência da alteridade. Depois, fecha-se em si mesmo, não aponta horizonte algum. Nota-se que o crítico não tem o costume da cultura árabe. O crítico dessa página esperava a solução dada pela ONU, uma ONG americana ou Rambo matador?! Parabéns a Nadime que apresentou essa verdade ao mundo ocidental, fazendo o mea-culpa com sua cultura libanesa.
    • Paulo A.
      UM FILME OBRIGATÓRIO E NECESSÁRIO!Um soco na consciência de quem ainda consegue se rebelar com as injustiças do mundo! Afinal, isso não basta! O filme e as realidades duras e cruas estão aí para serem modificados. Vamos levantar a bunda da cadeira e trabalhar incessantemente até que crianças não sejam mais submetidas as situações ultrajantes como as vividas pelo nosso pequeno grande herói.Uma história que conta o lado dos desgraçados da vida e se eles existem bem sabemos porque existem, e quem são os responsáveis por tanta barbárie! Não é possível dizer muito mais logo após assistir ao filme que já circula pelo mundo desde 2018, mas só agora consegui assistir. Sim, porque este filme nos impacta profunda e visceralmente, não necessariamente com lágrimas fáceis, mas no coração, na consciência e inconformismo.Que futuro podem esperar as crianças do mundo submetidas a condições tais? O sorriso no quadro final, talvez, seja de alguma esperança por estar vivo ou sobreviver, mas o nosso pequeno personagem é dotado da consciência crítica, do inconformismo, que o fará um lutador, sim, mas um ser humano com profundo amargo no coração!História preciosa, direção vigorosa e cúmplice de seus personagens, interpretação do pequeno Zain, estupenda. De onde vem aquele olhar, Nadine? Como você o capturou e perpetuou para todo o sempre nesta obra humanista e necessária? Obrigado!
    • pabloandrés
      Não compreendo como pode dizer isto.... Em momento algum o filme busca entender de onde vêm os conflitos, com que esferas institucionais se relacionam, de que maneira poderiam se desenvolver. Os ricos não existem neste mundo de miseráveis, composto por crianças famintas, bebês abandonados, refugiados escapando da polícia e pequenos comerciantes praticando tráfico de pessoas. Se assistiu o filme com atenção, percebeu a perversão do ricos, que abusam de crianças, adultos sem recursos ou idosos como se fossem mercadorias. O filme tem uma proposta, e não trazer soluções institucionais... me desculpe, mas é evidente perceber de onde vem os conflitos. São inúmeras fontes, e não importa a etiologia, mas sim poder perceber a denuncia que se apresenta até mesmo pela reação de um menino que quebra o establishment institucional instaurado nas relações psicosociais. Acho que inclusive o filme traz um desfecho maravilhoso, quando lhe é dada oportunidada ao menino de ter uma identidade... por que até então, era um anjo, sem sequer ter isso.
    • Dionice L
      Acredito que é exatamente por não apontar horizonte algum que o filme seja tão impactante. Qual horizonte há para populações inteiras que vivem na extrema pobreza, sem acesso a praticamente nada e sem perpectiva alguma de um futuro ao menos digno, sem política que se interesse real e efetivamente por elas? O filme é excelente e leva o espectador à reflexão. O ator que faz o papel do Zain é fora de série, fantástico. Emocionante.
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