Minha conta
    Canção da Volta
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Canção da Volta

    A mulher que não estava lá

    por Bruno Carmelo

    No início do filme, Júlia (Marina Person) foge de casa. Seu marido, Eduardo (João Miguel), procura desesperadamente por ela. Nas cenas seguintes, a família se prepara para uma festa, mas ninguém sabe onde a mãe está. Um pouco mais tarde, eles estão se divertindo na praia, até Júlia se distanciar, caminhando sem rumo sobre a areia. Neste drama, a protagonista é definida pela fuga constante, até exercer o ato máximo da evasão: a tentativa de suicídio. Mesmo quando está em casa, sua presença é distante, repleta de segredos.

    Por isso, o marido apresenta um movimento inverso de apreensão. Ele quer segui-la, desvendar os seus segredos, segurá-la pelo braço, iluminar seu rosto quando dorme no escuro, feito um cientista analisando sua cobaia. Canção da Volta funciona como uma coreografia, um tango no qual dois personagens apaixonados se movem de maneiras complementares, porém inversas. Embora o ponto de vista fique mais próximo do marido, o roteiro abre espaço para que o espectador compreenda a atitude dos dois: é normal que, em estado de fragilidade emocional, ela esteja silenciosa, e que ele, preocupado, projete sua raiva e seu desejo sexual nas pessoas ao redor.

    Estreando na direção de ficções, Gustavo Rosa de Moura adota uma abordagem dupla. Para registrar ações, o cineasta aplica a cartilha realista, com diálogos brutos e movimentação fluida de câmera, captando gestos livres dos atores. Para representar a psicologia dos personagens, usa metáforas visuais, como a ideia do apartamento soterrado e a dança da protagonista com os móveis da casa. É preciso ser dotado de muito talento para extrair poesia de uma luz se apagando na escada de emergência do prédio, ou de uma lâmpada torta dentro de casa.

    Canção da Volta consegue aliar as duas vertentes: ele é bruto em sua parte realista, e delicado na parte intimista. Do mesmo modo que os personagens são opostos e complementares, o filme brinca com a possibilidade de conjunção entre duas posições estéticas divergentes. As imagens são construídas com uma elegância ímpar – vide o momento em que o enquadramento em scope desliza lentamente, numa escola de dança, para revelar um personagem ao fundo, ou quando uma mão entra em quadro para acariciar outro personagem. Este é um filme violento sobre afetos, ou talvez um filme afetuoso sobre a violência.

    A escolha de elenco é tão distinta quanto a dupla Júlia-Edu. João Miguel, muito técnico, está prestes a explodir em cada cena, seja de raiva, tristeza ou desejo. Marina Person fica à vontade nas cenas coletivas – a festa em casa, a casa noturna – mas apresenta dificuldade em retratar a dualidade presença-ausência em duas cenas solitárias, na primeira metade da trama. De qualquer modo, a verossimilhança do casal é fortalecida pelo trabalho detalhista de direção de arte e pelo uso inteligente do som, sabendo valorizar o silêncio e extrair um efeito potente da mudança de trilha sonora.

    Canção de Volta também se destaca pela temporalidade fluida. Narrativas sobre tragédias familiares costumam atribuir grande atenção à linearidade, à relação de causa e consequência, mas este roteiro se desprende da integração entre as cenas. Elas poderiam vir antes ou depois uma das outras; talvez com o hiato de dias ou meses entre cada uma. O cineasta fornece ao espectador a experiência de folhear um álbum de retratos com fotos descoladas do papel. A cronologia afetiva sempre difere da cronologia histórica, e felizmente o projeto privilegia a percepção temporal ditada pelo amor.

    Talvez a conclusão atribua peso demais a um objeto pouco desenvolvido. Este elemento, fundamental ao clímax, é revestido de um suspense que não condiz com os símbolos anteriores. A direção se sai muito bem nas pequenas metáforas cotidianas (quadros, lâmpadas), mas se perde com esta caixa de Pandora que sublinha desnecessariamente a dor explícita em cada cena. Apesar de eventuais deslizes, a conclusão é pertinente, resgatando um verso de Arnaldo Passos e Monsueto Menezes capaz de sintetizar a curiosidade e melancolia do projeto: Pra que rimar amor e dor?

    Quer ver mais críticas?

    Comentários

    Back to Top