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    Aqueles que Fazem a Revolução pela Metade Apenas Cavam suas Próprias Covas
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Aqueles que Fazem a Revolução pela Metade Apenas Cavam suas Próprias Covas

    A sedução do extremismo

    por Bruno Carmelo

    “Quem faz a revolução pela metade apenas cava o próprio túmulo”. O título deste drama canadense constitui ao mesmo tempo uma ameaça e um guia de princípios. A frase sugere igualmente um apelo à violência e, durante 183 minutos, os jovens diretores Mathieu Denis e Simon Lavoie descrevem todas as agressões físicas, psicológicas e patrimoniais que o militantismo radical pode causar. Estamos falando de terrorismo, mas ao invés da vertente patriótica da extrema-direita, o roteiro dedica-se aos abusos igualmente perigosos da extrema-esquerda.

    Os protagonistas são quatro amigos dividindo um cortiço. Eles se atribuem alter-egos para a vida em comunidade: a prostituta transexual Klas Batalo (Gabrielle Tremblay) garante o magro sustento do grupo, o estudante Tumulto (Laurent Bélanger) possui uma nostalgia pela época de militantismo em partidos organizados, Giutizia (Charlotte Aubin) abandona os privilégios da vida riquíssima em nome da ideologia revolucionária, e Ordine Nuovo (Emmanuelle Lussier Martinez), a mais agressiva do grupo, planeja os seus próprios atentados e chega a sabotar os metrôs da cidade.

    Eles provêm de famílias estáveis, tradicionais (entenda-se: capitalistas, patriarcais, brancas e privilegiadas). Nenhum mantém contato frequente com operários ou outros trabalhadores desfavorecidos, mas o quarteto julga-se porta-voz dessa abstração chamada “povo”. “O povo não sabe que é infeliz, mas nós vamos mostrar a ele!”, grita Tumulto. Descrentes em qualquer forma de organização social – eles repudiam a política partidária, rejeitam as votações estudantis na faculdade – vivem em cômodos fechados e escuros, recitando poemas e criando números artísticos jamais vistos por qualquer outro público além do espectador do filme.

    Estes líderes sem liderança, ou messias sem seguidores, fornecem a contradição essencial de Denis e Lavoie. Os cineastas multiplicam recursos inusitados para criar uma subversão estética à altura do furor político. Entram em cena cartelas com frases de autores comunistas e anarquistas sobrepostas a cenas de dança ou performances grupais, somadas aos enquadramentos variáveis – ora extremamente horizontais, algo próximo do 1:3, ora quadradas, com margens pretas acima, abaixo, do lado direito e esquerdo – à fotografia meio naturalista, meio surreal, aos materiais de arquivo com protestos violentos nas ruas do Québec. Cria-se uma bem-vinda sensação de estranhamento que beira a gratuidade – algo que poderia descrever as próprias ações dos protagonistas.

    Mas a liderança anarquista possui as suas limitações. Os jovens seguros de si tornam-se indefesos quando encontram os pais, e são obrigados a ceder às regras da justiça para não serem presos. Acima de tudo, revelam-se bastante rígidos nas regras morais estipuladas uns aos outros: a menor infração às normas da casa é punida com a imposição aflitiva de autoflagelação. A veneração por estas ideias sem real eco na sociedade lembra o funcionamento das seitas. A crença de Batalo, Tumulto, Ordine e Giutizia une-se, por caminhos diversos, ao funcionamento das religiões extremistas.

    Ceux Qui Font Les Révolutions À Moitié N’ont Fait Que Se Creuser Un Tombeau (no original) guarda semelhanças com um excelente filme brasileiro recente, Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita Não é um Urso que Dança, de Thiago Mendonça. Ambos lidam com as utopias da vida gregária fora dos moldes capitalistas, e a própria frase “um homem que grita não é um urso que dança”, de Aimé Césaire, é citada no projeto canadense. Mas enquanto os brasileiros encontraram uma forma de liberdade e libertinagem associada à descontração, este outro projeto prefere uma abordagem sepulcral e autoindulgente.

    A escolha de tom acaba por reforçar as limitações do próprio filme. A dupla de diretores descreve muito bem as angústias e as ações dos protagonistas, mas não consegue se distanciar dos mesmos para imprimir um posicionamento político claro. Parte do material sugere uma crítica ao ao uso da violência, mas outra parte tolera o extremismo em nome de um ideal superior. Alguns personagens se arruínam pela causa anticapitalista, já outros encontram seu caminho na luta solitária. Ao final, o filme transmite carinho por estes revolucionários, que talvez sejam meio tortos, mas pelo menos “acreditam no que fazem”. No entanto, manter um ponto de vista ambíguo diante de atos terroristas pode ser algo bastante perigoso.

    Filme selecionado no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.

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