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    Vaya
    Críticas AdoroCinema
    1,0
    Muito ruim
    Vaya

    Bem-vindo ao inferno

    por Bruno Carmelo

    Você conhece Joanesburgo, na África do Sul? Se a cidade tiver a mínima semelhança com os fatos demonstrados nesse filme, é melhor ficar bem longe: assim que você puser os pés no local, será assaltado, sequestrado, estuprado, humilhado, torturado, e até os cadáveres de seus familiares serão roubados. As pessoas gentis do lugar são aquelas que não te estupram, apenas te encaminham a outro que vai tentar vendê-lo para a prostituição. Poucos retratos sociais foram tão catastróficos quanto o drama Vaya, de Akin Omotoso.

    A história pretende tratar da vida de três pessoas distintas, mas na verdade, são todas a mesma: três moradores do campo, paupérrimos e profundamente ingênuos, que chegam à maior cidade do país em busca de vida melhor. Uma jovem mulher está encarregada de transportar uma criança à cidade, para a família que nem se importa com a garotinha; outro deve buscar o corpo do falecido pai; o terceiro espera encontrar trabalho com o primo, até ser sequestrado, roubado e pilhado por pura maldade alheia. Quando finalmente encontra o primo, o visitante coberto de sangue ainda escuta: “Você tem sorte de estar vivo”.

    O roteiro divide os seus personagens entre selvagens e bons selvagens: de um lado, estão uma infinidade de mafiosos, traficantes, mães desnaturadas e cafetões. Do outro lado, estão os três protagonistas que, golpe após golpe, permanecem incapazes de desenvolver algum mecanismo de defesa. O jovem traído pelo primo continua a andar ao lado dele, a dançarina que acaba de ouvir uma história sobre artistas vendidas à prostituição vai fazer fotos nuas para um empresário, mas não suspeita das intenções perversas do homem. Produções maniqueístas costumam construir os bonzinhos como heróis, mas nesta trama todos são igualmente detestáveis, por sua desumanidade ou profunda falta de inteligência.

    Talvez Vaya seja uma espécie de Cidade de Deus para os sul-africanos: um retrato pop e alarmante da luta de classes, com artistas querendo sobreviver em meio à guerra civil. No entanto, este seria um cenário com três Buscapés cercados por milhares de Zé Pequenos. Percebe-se o sadismo do método, que consiste basicamente em jogar três pessoas puras aos leões, e observá-las serem dilaceradas. Não por acaso, o filme fala em figuras de pureza como os anjos e as crianças: é preciso ter mártires para oferecer ao sacrifício e justificar 115 minutos de maus-tratos ininterruptos.

    Esteticamente, Omotoso faz a escolha de reduzir bastante a profundidade de campo ao retratar os protagonistas. Para um filme em que a cidade possui um papel tão importante, ela se torna curiosamente invisível, transformada num borrão indistinto com flares decorativos. A superficialidade do olhar poderia ser aquela dos personagens, que não conseguem enxergar a realidade ao redor, mas também funciona como a limitação do ponto de vista do próprio filme, que jamais investiga as origens ou consequências do problema. Vaya restringe-se à constatação do caos.

    É surpreendente que o filme tenha sido selecionado em alguns dos festivais mais prestigiosos do mundo, como Toronto e Berlim. A vontade de destacar uma rara produção sul-africana pode justificar a seleção, porém a visão de mundo propagada por este projeto é questionável, para dizer o mínimo. Trata-se do discurso fetichista do africano como selvagem e pouco civilizado, um coquetel de preconceitos embalado em ritmo de suspense, pronto para exportação.

    Filme selecionado no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.

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