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    O Futuro Perfeito
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    O Futuro Perfeito

    A língua e a linguagem

    por Bruno Carmelo

    Numa aula de idiomas, um grupo de jovens chineses tenta pronunciar algumas frases em espanhol. “Bianca é enfermeira? Não, Bianca é atriz”. “Você mora com seu pai e sua mãe? Não, moro com meu tio e minha tia”. A artificialidade típica destes diálogos didáticos serve de motor para Futuro Perfeito, drama singular sobre uma adolescente chinesa, Xiaobin (Xiaobin Zhang) buscando se adaptar na Argentina.

    Quando sai da escola e se comunica pelas ruas, a protagonista é obrigada a usar o mesmo tipo de linguagem truncada de suas aulas de línguas. De repente, as frases dos livros pedagógicos não soam mais tão engraçadas assim: elas constituem o limite da interação da chinesa com o mundo. No momento em que não consegue ler o cardápio de um restaurante, por exemplo, ela simplesmente se levanta e abandona o lugar. A precariedade financeira se une às dificuldades de inserção cultural, descritas gradativamente durante as aulas, com o limitado vocabulário de que a jovem dispõe.

    A diretora Nele Wohlatz faz da língua o espaço de interação com o mundo, e passa a brincar com os equivalentes imagéticos desta limitação de idiomas. Os adultos com quem Xiaobin não consegue conversar são eliminados das imagens, ou são percebidos apenas por suas vozes fora de quadro. Os pais, figuras distantes que a acolhem em território argentino por puro interesse financeiro, também ficam ausentes das cenas. A única pessoa que aparece inteira, com a mesma naturalidade da protagonista, é um garoto indiano que a encontra e, mesmo sem conhecê-la, quer se casar com ela.

    Na dificuldade de interagir em detalhes, eles manifestam o desejo de gostar um do outro, e projetam essa vontade no corpo desconhecido alheio. É tão comovente quanto desconfortável ver este casal que não se toca, não conversa, e sequer conhece o nome completo da pessoa amada. Eles se unem pela solidão e pela exclusão com o meio. Para acentuar o deslocamento, Futuro Perfeito trabalha com atores não profissionais, sem o menor traquejo cênico, para que a artificialidade de seus encontros condiga com a rigidez da fala e da postura corporal.

    Tamanha estranheza gera um filme de efeito surpreendente. O projeto não tem preocupação em ser belo, mas inquisitivo, analítico. Quando a aluna de espanhol diz que fez (no passado) alguma ação, acredita-se nela e supõe-se que se trate de informações sobre o seu passado, quando diz que quer (no presente) algo, tende-se a interpretar a situação como verdadeira, quando descreve o que aconteceria (no condicional) caso seus pais soubessem do namoro escondido, as imagens aparecem em tela como se de fato estivessem ocorrendo. Nunca se sabe realmente se os fatos estão acontecendo, ou se constituem meros exemplos de uma aula de línguas.

    Assim, Futuro Perfeito consegue ser ao mesmo tempo poético e político, ultrarrealista (os não-atores, a luz natural, o aspecto voluntariamente precário da estética) e fantasioso, pois todos os relatos podem ser a ilusão de um discurso de linguagem, ou um erro de interpretação nas palavras. A cena de conclusão, neste sentido, é genial ao introduzir uma metáfora completamente silenciosa do aperfeiçoamento linguístico de Xiaobin. Wohlatz trabalha com uma subversão análoga à dos filmes de José Luis Guerín (A Academia das Musas), na qual a realidade é apenas um detalhe sacrificado em prol de um jogo instigante de linguagem cinematográfica.

    Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.

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