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    Uma Vida Oculta
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Uma Vida Oculta

    O homem que não amava Hitler

    por Bruno Carmelo

    O peso autoral de Terrence Malick dentro do círculo cinéfilo poderia ser medido pelas conversas nos bastidores do Festival de Cannes. Ninguém se programava para assistir a A Hidden Life, mas “ao novo Malick”, “o Malick das 19h”. Persona central do culto ao autor excêntrico (ele nunca aparece em entrevistas) e guiado apenas pelo talento, não pela estrutura tradicional (ele recusa roteiros finalizados, apaga personagens importantes na sala de montagem), Malick apresenta em sua nova obra os inúmeros traços de linguagem que garantiram o sucesso de sua marca: a imagem ampla em formato scope, os planos em plongée/contra-plongée e grande angular, o foco nas paisagens com fundo infinito, a trilha sonora clássica, o apelo constante à presença divina.

    Os fãs das últimas obras existencialistas do diretor (A Árvore da Vida, Amor Pleno, Cavaleiro de Copas) encontrarão uma proposta diferente neste drama mais estruturado, linear, e baseado na história real de Franz Jägerstätter, camponês austríaco condenado à morte por não jurar lealdade a Adolf Hitler. Apesar da forte pressão da Igreja, dos vizinhos e da polícia da época, este homem preferiu ser morto a assinar um documento apoiando o líder nazista. Ele seria o equivalente ao que se chama atualmente de “objetor de consciência”, pessoa que se nega a integrar um combate por considerá-lo incompatível com sua crença religiosa. No caso, Franz acreditava que o genocídio de judeus e outras minorias não condizia com os ensinamentos cristãos.

    Seria fácil transformar o caso exemplar do personagem numa obra histórica ou política sobre os perigos do extremismo. Esta mensagem seria, inclusive, muito pertinente aos dias atuais. Entretanto, o diretor prefere construir um caso de moralidade. Ninguém discute decisões políticas ou sociais de Adolf Hitler nesta história. Não se fala sobre a cultura do medo, a crise econômica como catalisadora de inseguranças e de posições políticas extremas, a estratégia de desumanização do adversário para permitir exterminá-lo sem peso na consciência. Malick canaliza o discurso para o embate entre o bem e o mal, o certo e o errado. “Tenho medo de morrer, mas acreditemos no triunfo do bem”, afirma Franz, enquanto outro personagem o apoia: “É melhor sofrer injustiça do que cometê-la”.

    É curioso que, após três horas de duração, conheçamos tão pouco sobre qualquer personagem. Malick multiplica suas tradicionais cenas de amantes se beijando sobre uma planície esverdeada, famílias brincando sobre uma planície esverdeada e camponeses trabalhando sobre uma planície esverdeada. Para o diretor, a natureza sempre foi a porta de entrada apara a espiritualidade. Entretanto, desconhecemos os motivos que levaram o protagonista a se opor tão fortemente a Hitler, tendo convivido apenas com pessoas ignorantes politicamente e favoráveis ao nazismo. Em paralelo, a estoica esposa Franziska (Valerie Pachner) jamais tenta convencer o marido a mudar de ideia, e se priva de expressar um ponto de vista sobre o caso.

    Malick aposta num maniqueísmo evidente. Sua ideia de beleza clássica – a predominância de paisagens e romantismo – contamina a caracterização dos personagens, que são moralmente belos ou corruptos, vilânicos ou gentis. Mesmo após muitas sessões de tortura e maus tratos na prisão, Franz continua belo, limpo, sem uma única cicatriz no rosto. O diretor nunca permite que o realismo contamine sua busca austera pela perfeição. Deste modo, a construção histórica se torna tão ostensivamente idealizada quanto asséptica – vide os austríacos se comunicando em inglês, a alegria inabalável do colega sorridente na prisão (Franz Rogowski) e o desprezo caricatural da mãe de Franz.

    Devido a estas escolhas, Franz Jägerstätter se transforma num herói incorruptível, homem sincero, comedido, bom pai e marido, trabalhador incansável, desprovido de defeitos ou ambiguidades. Em exatas duas horas de projeção, o aspecto religioso invade o filme por completo, quando os personagens começam a se comunicar com os céus, pedindo a Deus para esclarecê-los ou protegê-los contra a maldade dos homens. “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, parece dizer Franz. A aceitação do destino fatal equivale a um martírio religioso, uma crucificação. Malick se apropria de um fato histórico para construir seu próprio Jesus em meio aos romanos. A vocação transcendental e expiatória desta fábula se torna evidente.

    Tornou-se hábito, entre críticos e cinéfilos em geral, desprezar o cinema cristão pela pobreza da média das produções de vocação educativa. Após tantas descrições edificantes sobre Jesus salvador e seus profetas, ainda não se discute o peso da obra recente de Terrence Malick dentro desta vertente. O norte-americano seria um exemplo de bom diretor atual que efetua, com grande suporte de produção e apoio de excelentes atores, um cinema temerário a Deus e crente na necessidade de educar os homens sobre as virtudes bíblicas. Nem sua obra sobre padres (Amor Eterno) nem o épico sobre a cosmogonia (A Árvore da Vida) foram tão claros na abordagem cristã quanto esta biografia que, partindo de uma recusa política, converte-se em parábola religiosa.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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