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    Cinema Novo
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Cinema Novo

    Identidade cultural

    por Francisco Russo

    O que foi o Cinema Novo? O mais importante movimento cinematográfico brasileiro poderia perfeitamente render um documentário didático sobre suas origens, interesses e a própria ruptura por ele causada em relação ao que era produzido no país até então. Afinal de contas, material não falta - seja de arquivo ou com vários de seus expoentes ainda vivos. Entretanto, Eryk Rocha resolveu fazer algo diferente: com esta mesma proposta em mente, mostrar o que foi o Cinema Novo a partir do próprio Cinema Novo. Como? A partir de seus filmes.

    É desta forma, iniciando e terminando com a mesma sequência do icônico Deus e o Diabo na Terra do Sol, que a narrativa de Cinema Novo é paulatinamente construída. Cenas dos mais diversos filmes produzidos no período são intercaladas de forma a dar uma certa coerência estética e até mesmo narrativa, em um impressionante e rigoroso trabalho de edição, feito por Renato Vallone. De certa forma, o trabalho aqui executado por Eryk Rocha lembra a carreira de outro diretor brasileiro bastante conceitual: Marcelo Masagão. Só que, neste caso, Eryk utiliza tal formato para atingir um objetivo, o de contar o Cinema Novo a partir da voz daqueles que o tornaram possível, enquanto que Masagão costuma construir histórias a partir das colagens mais esparsas, sejam elas ligadas ao cinema ou não.

    Questões conceituais a parte, o mais impressionante em Cinema Novo é a coerência e o interesse contínuo provocados por tal narrativa. Se quem conhece os filmes selecionados tem a chance de reconhecê-los na tela, numa espécie de jogo de adivinhação cinéfilo, tal conhecimento prévio não é propriamente necessário para se apreciá-lo. Pouco a pouco, a partir de cada nova cena, compreende-se melhor a proposta do movimento em abandonar os estúdios e ir para a rua, mostrando a vida como ela era, sem maquiagem. Tratava-se de uma ruptura estética muito forte, seja pelo uso cada vez maior da câmera na mão ou por representar camadas mais populares, que não tinham muito espaço até então. Da mesma forma, a união daquele grupo de cineastas veio não propriamente de algo planejado, mas de uma coletânea de interesses conjuntos que fez com que, naturalmente, se aproximassem.

    Este, inclusive, é um dos aspectos mais saborosos do documentário. Ao dar voz aos diretores, a partir de material de arquivo, é possível perceber não só a vibração inerente ao trabalho produzido como também os questionamentos por eles levantados, alguns que perduram até os dias atuais. Por exemplo, em determinado momento Cacá Diegues diz: "somos um cinema popular, mas o povo não vê nossos filmes". Não é o que acontece hoje em dia, com a clara preferência do público pelas comédias em detrimento de grandes filmes nacionais, como O Silêncio do Céu e O Lobo Atrás da Porta, que têm bilheteria pífia? Como se pode ver, as décadas passam e certos problemas do cinema brasileiro permanecem sem solução.

    Da mesma forma que tão bem conceitua a importância do Cinema Novo como movimento, sem fazer uso de qualquer elemento mais didático, o documentário de Eryk Rocha também brilha ao mostrar o porquê de seu esvaziamento, a partir do golpe militar. Chega a ser de uma ironia cínica o fato de, no mesmo ano em que o golpe tenha ocorrido, dois filmes nacionais terem sido selecionados para a mostra competitiva do Festival de Cannes - Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas -, outro para a Semana da Crítica (Ganga Zumba) e mais um para o Festival de Berlim (Os Fuzis). Foi ao mesmo tempo o ápice do movimento e também o início de seu esvaziamento, graças ao boicote interno promovido pelo governo de forma a separar (ou ao menos dificultar) o trabalho daquele grupo de cineastas tão unido e participativo. Curiosamente (e infelizmente), a mensagem da necessária liberdade para se ter um cinema pungente e vibrante bate forte ainda nos dias atuais.

    Por todos estes motivos, Cinema Novo é um belo filme que não só explica o que foi o movimento, como lhe dá corpo, voz e coração. O uso de cenas de filmes e entrevistas de época lhe traz uma riqueza impressionante, não apenas pelo aspecto técnico mas pela própria realidade retratada. Um belo filme, com ecos do trabalho anterior do diretor, Campo de Jogo, no sentido de destrinchar sensações ao invés de se ater ao caminho fácil do didatismo. Merece ser conferido por interessados em cinema ou simplesmente por aqueles que tenham interesse em conhecer melhor a história do Brasil.

    Filme visto no 69º Festival de Cannes, em maio de 2016.

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