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    Os Garotos Selvagens
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Os Garotos Selvagens

    A ilha mágica da transexualidade

    por Bruno Carmelo

    A brincadeira é bastante divertida a princípio. Uma tela em formato próxima do quadrado, com as bordas arredondadas, remete ao cinema da primeira metade do século XX. O preto e branco profundo e as encenações teatrais criam um ambiente farsesco, com o acréscimo kitsch dos figurinos e efeitos especiais voluntariamente toscos em chroma key. Ocasionalmente, as imagens adquirem um colorido artificial. Não existe uma cena que não salte aos olhos por sua construção circense: estamos diante de uma fábula com notável senso de humor.

    A maior surpresa vem do fato de os cinco garotos selvagens do título serem interpretados por atrizes adultas: Vimala Pons, Pauline Lorillard, Diane RouxelAnaël Snoek e Mathilde Warnier. Não se trata de algum artifício dos personagens: dentro da trama, os jovens são típicos garotos heterossexuais cisgênero, loucos para perder a virgindade com as meninas e expressando através da violência o seu privilégio masculino. A evidência do corpo feminino espremido nas roupas masculinas cria um humor particular: quando eles seduzem uma garota, sabemos que existe uma conotação lésbica na cena, e quando manifestam desejo pelo pênis de um capitão (Sam Louwyck), o teor supostamente homoerótico se funde com uma atração heterossexual. O filme propõe uma alegre fluidez de identidades e corpos.

    O princípio se estende à narrativa: enquanto o dispositivo brinca com a orientação sexual (hétero/homo), o roteiro joga com a identidade de gênero (trans/cis). Os “pequenos burgueses pedantes”, como diz um personagem, são levados a uma ilha mágica, cujos poderes transformam qualquer homem numa mulher. Aos poucos, começam a nascer seios e o pênis cai como o dente de leite de uma criança. O filme se diverte com o medo da castração, a inveja do pênis, os perigos de ceder ao desejo, e com as ameaças constantes de estupro corretivo ou cura gay. Toda forma de violência aplicada ao corpo e à sexualidade é representada e desconstruída pelo mecanismo autorreferente do diretor Bertrand Mandico.

    Apesar de tantos elementos interessantíssimos em mão, o resultado perde a sua força à medida que progride. O choque estético se dilui, afinal, os maneirismos da imagem se repetem sem se desenvolver; e a pluralidade de mensagens de diversidade sexual e de gênero parece não caminhar a lugar algum. Que discurso se propõe sobre a violência e repressão, a diversidade e as normas aplicadas ao corpo? Os Garotos Selvagens sabe muito bem embaralhar as cartas, mas depois não organiza nada particularmente relevante sobre as suas questões. A conclusão, em especial, é tão dispersa que poderia ser interpretada como progressista ou reacionária, a gosto.

    Além disso, ao longo de extensos 110 minutos, o criador se perde no próprio labirinto: depois de criar o tabuleiro e dispor as suas peças, Mandico não consegue criar uma trajetória ou psicologia distinta para cada garoto, e desenha uma evolução inverossímil do capitão. Para os atores e para os espectadores, pode ser divertido ver a transformação dos corpos, presenciar as atrizes cisgênero balançando o pênis e testemunhar a posterior perda do membro. No entanto, se estas cenas não produzem um discurso claro sobre as identidades, utilizá-las apenas como fonte de chacota e exotismo não deixa de trazer um olhar contraproducente à representação da transexualidade e da homossexualidade.

    Filme visto no 26º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.

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