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    Petra
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Petra

    Conto sobre a crueldade

    por Bruno Carmelo

    Petra é um filme voluntariamente estranho, no sentido mais simples do termo: ele faz questão de fugir dos padrões, ocultar informações que poderia entregar facilmente, tratar com leveza temas pesados, e com gravidade as histórias de amor. Sua estrutura narrativa começa pelo capítulo II, ao qual o espectador pode reagir: mas existiu um capítulo I, ou ainda vai existir? As descrições de cada letreiro antecipam as reviravoltas, ao mesmo tempo que prometem um choque quando enfim acontecem. “Capítulo 1: Quando descobrimos a morte da mãe de Petra”, ou algo do tipo, faz pairar sobre todo o segmento a espera de uma morte, contaminando as demais imagens e criando uma permanente atmosfera de suspense.

    A morte funciona como motor central desta história. Ela se inicia com a morte da mãe da protagonista, e parte para o acerto de contas com uma morte simbólica, aquela do pai jamais conhecido. No caminho, outros sacrifícios serão feitos ao destino, numa narrativa repleta de reviravoltas, cujo entrelace complexo remete às tragédias gregas. Petra seria uma parente distante de Antígona, Eurídice, Jocasta e Medeia, outras figuras femininas trágicas para quem os laços familiares são manchados de sangue. Quanto mais a jovem pintora decide acertar a sua vida – conhecendo o pai, investindo na carreira artística, formando uma família –, mais a narrativa joga contra ela, e contra todos aqueles que cruzam o seu caminho.

    Muitos cinéfilos e críticos torcem o nariz para o cinema de Jaime Rosales devido ao olhar amoral sobre a humanidade. Ele foi acusado de perverso, cínico e niilista por filmes como As Horas do Dia, La Soledad e Tiro na Cabeça, tendo despertado reações semelhantes com este novo projeto no festival de Cannes. Rosales prefere enxergar o pior dos seres humanos, ou talvez seja melhor dizer que ele se concentra nos excessos e desvios de norma que perturbam a ordem social, porém de modo clínico, elegante, contemplativo. Este é um cinema do caos observado com requinte e precisão cirúrgica. Não estamos muito distantes do pessimismo irônico de Michael Haneke ou Yorgos Lanthimos, por exemplo.

    As imagens são compostas sem sentido de improviso ou urgência. Cada movimento é calculado, estudado, num balé da câmera que nunca para de se mover: ora ela se desloca lentamente de um cômodo ao outro, desliza de um rosto ao outro quando duas pessoas conversam sobre uma planície esverdeada, ou ainda evita ambos os atores para se focar na paisagem enquanto conversam, fora de quadro. As movimentações preparam o espectador para algo maior alguns metros adiante, como se os planos jamais fossem terminar, como se houvesse algum segredo a revelar no final de cada capítulo, de cada corte da montagem. A atmosfera sombria é muito bem construída pela trilha pontual, com cânticos de teor religioso sobrepostos à natureza vazia, produzindo um efeito próximo ao cinema de terror.

    Ao final da sessão, durante o Cine Ceará, diversos espectadores reclamavam da experiência incômoda. Para quê tanta violência, tanta perversidade, tantos relacionamentos sem amor? Por que tratar a violência com tamanha banalidade, por que calibrar os excelentes Barbara Lennie, Alex BrendemühlMarisa ParedesJoan Botey para atuarem de modo tão frio diante de uma tragédia? Jaime Rosales, se estivesse presente, provavelmente ficaria feliz com esta reação. Seu projeto é feito para provocar, para retirar o espectador da posição de conforto e da certeza que tudo se acertará no final. Ao contrário de um cinema escapista e solar, Petra prefere confrontar os espectadores aos laços instáveis de uma família que se compõe e se desfaz a cada cena, a romances que se insinuam e se destroem em poucos minutos. Não há nada muito confortável em se identificar com qualquer um desses personagens, realistas e cruéis ao mesmo tempo.

    Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.

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