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    A Serpente
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    A Serpente

    O papel do homem, o papel da mulher

    por Bruno Carmelo

    “A obrigação do homem é tentar; a obrigação da mulher é recusar”. A frase que abria a comédia italiana A Garota com a Pistola ressaltava o conflito entre os desejos individuais e a moral cristã. Por um lado, o homem casado deveria ser fiel à esposa, como prega a doutrina religiosa, mas espera-se do macho que ele flerte com outras mulheres (e, caso elas cedam, parta para o ataque). Por outro lado, a mulher deve ser casta e virgem, porém se demonstrar prazer sexual e tiver um desejo mais frequente que o do marido, será considerada uma prostituta. Caso traída, ela tem a obrigação de perdoar, porque os votos do matrimônio duram “até que a morte os separe”. O teor moral envolvendo sexo e religião é conflituoso, ainda que os dois sejam indissociáveis: o sexo é necessário para a reprodução, e os filhos seriam “presentes de Deus”, no entanto, o sexo apenas por prazer é condenável.

    Estes paradoxos constituíram o principal material de trabalho da obra de Nelson Rodrigues, e funcionam como motor da peça A Serpente, adaptada ao cinema pelo diretor Jura Capela. A premissa é tão simples quanto fascinante: duas irmãs moram juntas. Ambas se casam, logo, espera-se que percam a virgindade. Ora, uma das irmãs não é muito frequentada pelo marido, e a outra se sente vítima da impotência do esposo, que no entanto demonstra desempenho impecável com a lavadeira. É inevitável que estes caminhos se cruzem: o cunhado será aquele a deflorar a cunhada, na cama de casal, diante dos olhos da esposa, que flagra a cena. Como boa cristã, Guida deve aceitar o marido de volta. Como mulher de respeito, Lígia pretende ser a única mulher daquele que tirou sua virgindade. O triângulo é insolúvel, enquanto o texto acena desde o início à morte de um dos vértices. A questão, portanto, diz respeito ao desenlace: quem vai matar, e quem vai morrer?

    É impressionante como A Serpente consegue condensar tantos conflitos morais, tendo apenas dois personagens em cena durante a maior parte do tempo. Diante da traição, o casal toma a medida mais pragmática e hipócrita possível: queima o colchão, considerado a prova do crime. Cada intertítulo da trama (uma dezena, ao longo de sucintos 70 minutos de duração) traz uma espécie de provérbio popular sobre o amor e o desejo. Ainda mais interessante é a escolha de Lucélia Santos para interpretar as duas personagens femininas centrais: para Guida, torna-se ainda mais insuportável ser trocada por outra idêntica a si mesma. Como poderia perder para a sua cópia? Como enxergar numa mulher de mesma aparência a sua principal inimiga? Como justificar o desejo do marido por uma, mas não por outra? As roupas de tons opostos – uma veste tons claros, e a outra, escuros – tratam de opor metades que compõem a mesma mulher. Lígia e Guida, ambas Lucélia Santos, ambas querendo ser amada e fazer sexo da mesma maneira, constituem partes da mesma mulher.

    Capela encontra soluções imagéticas muito interessantes para conferir dinamismo às interações entre personagens, além situar a narrativa num domínio atemporal. As imagens jamais buscam ser totalmente realistas: o fundo preto infinito remete ao palco teatral, e a gigantesca cama de casal como único móvel do quarto reforça a importância deste objeto na vida de ambos. Estamos em território simbólico, ao invés de propriamente naturalista. As luzes contrastadas, as filmagens aéreas do campo e o ponto de vista interno da cova carregam uma atmosfera de pesadelo constante. Às vezes, os corpos de deslocam naturalmente entre as árvores, mas em outros momentos, os atores quebram a quarta parede e dialogam com o público. Joga-se com a imersão e o distanciamento, os espaços reais e imaginários. A ambiguidade entre Guida e Lígia se torna uma representação perfeita deste jogo entre representações idênticas, espelhadas ou decalcadas do original.

    No elenco, os atores se entregam com todo o senso de performance que a direção exige. Lucélia Santos reforma a candura na voz de Lígia e o rancor nas falas de Guida, Matheus Nachtergaele enrosca o corpo sobre a cama e se lambuza de mangas para demonstrar seu desejo sexual. Este é um território ao mesmo tempo sutil (intimista) e um tanto grotesco (exteriorizado), pelo caráter acessório de cada figura (“o marido”, “a esposa”, “a cunhada” etc.), e pelo prazer de sugerir a irrupção iminente da morte e do sexo. A Serpente vai além, criando um caminho em que a pulsão sexual só ganhará vazão de fato quando um dos elementos for eliminado – ou seja, o prazer sexual será maior não apesar do assassinato, e sim por causa dele. Sílvio Restiffe e Cellia Nascimento representam o olhar alheio de quem realiza os desejos sexuais longe das regras sociais. “Tu encaravas mesmo aquele rabo?”, pergunta a lavadeira. Fora do lar, é possível ser grosseiro e abertamente sexual. Dentro de casa, no entanto, impera a mora religiosa.

    Partindo de uma produção visivelmente restrita, Capela extrai o melhor de seus atores, de seus espaços e recursos artísticos. A criatividade das composições nunca se confunde com estetismo, ao mesmo tempo em que efetua uma ponte complexa entre as linguagens do cinema e do teatro. O texto de 1978, último da carreira de Nelson Rodrigues, soa tão contemporâneo quanto as demais obras de sua autoria. Esta foi uma das notáveis proezas do autor: a capacidade de elaborar um discurso crítico capaz de servir tanto como crônica (ligada ao seu tempo) quanto como fábula (de valores atemporais). No Brasil do século XXI, este filme poderia espelhar a ascensão da moral religiosa institucionalizada e o retorno de uma relação dicotômica, e oposta, entre homem e mulher. Em seu expressivo jogo de luzes e sombras, seu belo preto e branco e sua trilha sonora provocadora, A Serpente ilustra o retorno de uma moral responsável por censurar corpos e identidades.

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