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    Reset - O Novo Balé da Ópera de Paris
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Reset - O Novo Balé da Ópera de Paris

    Grito claro, show brilhante

    por Rodrigo Torres

    A definição primordial do documentário — algo como registrar a realidade — é um trunfo na mão dos grandes cineastas do gênero. Se por um lado é sabido que o público médio espera de fato observar a verdade, mestres como (foi) Eduardo Coutinho são capazes de manipular essa expectativa, explorar suas potencialidades e transformar a representação parcial, subjetiva, de um filme documental num exemplar com as características de uma grande ficção: personagens, enredo, reviravoltas, suspense, um grand finaleReset - O Novo Balé da Ópera de Paris é uma dessas pérolas híbridas.

    Benjamin Millepied é o protagonista. Filho de uma professora de dança contemporânea, o artista francês foi bem jovem para os Estados Unidos, estabelecendo sua formação como bailarino e coreógrafo no New York City Ballet e tornando-se mundialmente famoso ao conceber os números de dança de Cisne Negro, (premiado com o Oscar de melhor atriz para Natalie Portman, que viria a se tornar sua esposa). Seu retorno profissional à terra natal acontece em outubro de 2014, quando é convidado para dirigir a Paris Opera Ballet. Reset acompanha Millepied durante os 40 dias que antecedem a montagem de seu primeiro espetáculo na prestigiada e mais antiga companhia de balé do mundo.

    Thierry Demaizière e Alban Teurlai são sagazes de estabelecer o tempo de Reset, desde os instantes iniciais, numa contagem regressiva rigorosa; tanto por sua forma, clara (cartelas negras com números grandes amarelos surgem na tela sempre que um dia passa), como numa montagem que acentua as jornadas atribuladas de Millepied. Morando em seu escritório, o diretor precisa cuidar de toda a parte burocrática da Ópera de Paris enquanto comanda os primeiros ensaios de um show que parece fadado a não ser finalizado a tempo — um conflito comum em docs e ficções, e, assim, prontamente identificável junto ao público.

    A jogada inteligente de Demaizière e Teurlai gera rápido envolvimento do espectador com a "trama", com o tempo (exíguo) funcionando como obstáculo para personagens que reforçam o "efeito câmera" (basta ligá-la para toda pessoa atuar) e também geram pronta identificação: Benjamin é dedicado, confiante, exemplar frente a todas as intempéries, sorridente até diante de uma secretária enlouquecedora que surge como alívio cômico involuntário (essa, do alto de seus visual e comportamento excêntricos, "atua" com força, não pode ser de verdade). Então, aos poucos, esse delicioso exercício de manipulação dá lugar a um conflito factual: o confronto entre a pessoa Millepied e toda uma tradição da Ópera de Paris.

    O coreógrafo francês (graduado na América, fascinado por dança contemporânea) confronta os tabus do balé clássico europeu: rigidez, pressão, competitividade, racismo. Mais que dizer, Benjamin Millepied se porta como um personagem de ação e questiona a mentalidade e a infraestrutura da Ópera de Paris ao vivo: batendo no assoalho duro do palco, contratando médicos para cuidar da saúde dos bailarinos, escalando uma mestiça como estrela de "Clear, Loud, Bright, Forward" — sim, um título tão repleto de significados sobre a filosofia do artista com proposta revolucionária quanto o próprio "Reset".

    Se todos esses aspectos já alçam Thierry Demaizière e Alban Teurlai como bons contadores de histórias documentais (vide a entorse flagrante da bailarina ruiva, no início do filme, que terá efeito dramático no final), os diretores brilham até mais na condução da câmera, sempre próxima, à mão e, claro, em movimento  o que tanto realça a narrativa de um filme baseado na passagem dos dias, como a dança, a música, os corpos. Quanto mais se aproxima dos dançarinos, mais a câmera se mexe, pulsa. Quando não sobe, desce, baila. Umas poucas sequências videoclipadas são intercaladas organicamente com momentos de câmera estática que evocam a contemplação de quadros perfeitos; da mise-en-scène dos bailarinos enfileirados ao filtro de fotografia que reflete a elegância e a modernidade de Millepied. Nas alternâncias de ritmo ainda reside um dinamismo que sustenta a longa duração do documentário.

    Ao fim, "Clear, Loud, Bright, Forward" se materializa e proporciona uma experiência sensorial plena, que remonta a grandes correspondentes recentes, como Pina e Crazy Horse, e gera catarse pelo triunfo do protagonista. A apresentação é tão emocionante que uma informação final, resultado do conflito entre Benjamin Millepied e a Ópera de Paris, deixa um amargor derradeiro. Como que o herói de Reset tivesse se rendido e não fosse mais viver para proporcionar um espetáculo tão belo.

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