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    JT Leroy
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    JT Leroy

    Naufrágio diretorial

    por Renato Furtado

    Dentre todos os gêneros cinematográficos, é possível que o das cinebiografias seja o mais repetitivo — e, portanto, aquele que tem mais potencial para quebrar o molde. Isto porque enquanto a maioria das produções do tipo concentra-se em diluir os fatos para glorificar estes ou aqueles momentos no batido esquema do “nasceu, viveu, fez grandes coisas e morreu" (geralmente depois do vício, no caso das cinebiografias de músicos), aquelas que fogem à regra apresentam inovações e variações que nos aproximam mais da essência de seus biografados; afinal de contas, é impossível fazer uma vida inteira caber no curto espaço de duas horas. E existe, é claro, um terceiro tipo de cinebiografia, aquela que não está lá, nem cá, como o JT Leroy de Justin Kelly (Eu Sou Michael).

    Ao passo em que o diretor demonstra compreender como a verdade sempre escapa dos dedos, incluindo uma proverbial citação de Oscar Wilde logo no começo da projeção — "A verdade raramente é pura e nunca é simples" —, o que segue a cartela inicial é uma atitude de conformidade sufocante às normas, que faz com que a potência de camadas após camadas da narrativa se perca como um todo, antes mesmo que as anunciadas possibilidades desta trama coestrelada por Laura DernKristen Stewart possam se solidificar. O que é, em si, uma infelicidade, pois que biografadas melhores para um drama como este do que duas mulheres cujas identidades antagônicas produziram uma síntese ainda mais inesperada do que sua já inusitada parceria, para começo de conversa?

    No melhor estilo "bom demais para ser real", os eventos ficcionados neste JT Leroy circundam o irrealmente concreto personagem-titular, uma persona masculina literária de amplo sucesso, inventada pela autora Laura Albert (Dern) e corporificada por sua cunhada, a jovem Savannah Knoop (Stewart), recém-chegada à cidade de São Francisco e intrusa no paraíso particular compartilhado por seu irmão, Geoffrey (Jim Sturgess), e a escritora. Encarar esta breve descrição, meramente estudar o princípio deste caso estranho, é como dar uma boa olhada em um abismo fascinante, cujas profundezas não podemos enxergar, de fato, mas nas quais desejamos mergulhar, a despeito do evidente perigo que a empreitada pode acarretar.

    De certo modo, este querer da audiência espelha — ainda que não por mérito da direção, vale ressaltar novamente — o querer das duas protagonistas, duas mulheres que buscam constituir identidades próprias para si, que não precisem passar pela validação masculina e que possam ser firmes o suficiente para que seus lugares no mundo (e, especialmente, em um tão cruel quanto o da arte) não sejam mais questionados: para que ambas, Laura e Savannah, possam ser. É, em suma, um dos motes das lutas feministas, seja em 2001, quando JT Leroy é ambientado, seja nos dias de hoje. Mas o que é verdadeiramente interessante sobre a premissa não é particularmente a questão do esforço pela conquista dos direitos sociais das mulheres em si, mas o desenrolar das trajetórias de Laura e Savannah, e as perguntas por ele suscitadas.

    Sendo um perigoso produto de duas psiques evidentemente fraturadas, a primeira questão que é colocada é simples: em um mundo de autores, quem é que tem a autoridade sobre JT? Por isso mesmo, a cena do primeiro ensaio fotográfico de Savannah como JT, por exemplo, é de uma tensão ímpar porque Speedy — outro alter ego criado por Laura, a irritante agente britânica do astro da literatura, que não mede palavras e sempre diz o que pensa, uma criatura que opera como válvula de escape para todos os desejos e sentimentos reprimidos por Laura — tenta controlá-lo. No entanto, JT, em si, também faz parte do mesmo corpo que personifica Speedy, ainda que em um âmbito espiritual, porque o corpo mesmo de JT não é o de Laura, mas o de Savannah.

    Nos meandros das complexidades das máscaras que as duas mulheres vestem para encontrar suas interioridades, sendo o corpo uma vitrine, uma exposição de afetos, outras questões igualmente cruciais, mas muito mais universais, surgem na esteira: de fato, quem é que tem autoridade sobre si mesmo e sobre sua identidade? Máscaras são realmente factíveis, é possível fugir de si? Quem tem autoridade sobre a verdade? E se estamos tratando de uma mentira, só por isso quer dizer que ela não não pode ser verdade também? São questionamentos como estes os levantados por JT Leroy, filme que a despeito de suas limitações situa-se confortavelmente no atual estado contemporâneo de tensão eterna entre o que é real e o que é falso, entre o que é humano e o que é um avatar produzido para as e pelas redes sociais.

    Como se tudo isso não bastasse, a entrada de Eva (Diane Kruger) demonstra que JT Leroy era, possivelmente, um dos projetos mais ricos em potencial destes últimos anos. Como interesse romântico de JT — uma mulher vestida de homem, vale lembrar, em uma inversão trágica e dilacerante dos motivos cômicos de Shakespeare —, Eva só atiça ainda mais o fogaréu de ressentimentos, recalques, ciúmes, mágoas, repressões e autoflagelação. Ainda que Savannah e Laura não nutram uma relação romântica e/ou erótica entre si, é impossível dissociar uma da outra por causa de JT, e toda a tomada de poder feminino que reside no núcleo desta trama — uma resposta à masculinidade e aos gêneros pré-determinados pela biologia — é contrabalanceada por estes fortes conflitos, internos e psicológicos.

    No papel, estes temas são, aliás, tão impactantes que seriam dignos de um thriller de François Ozon (O Amante Duplo) ou, sobretudo, de Pedro Almodóvar (A Pele que Habito). A citação ao mestre espanhol, a propósito, não é mera coincidência, uma vez que os inúmeros subtextos e desafios inequívocos à ordem vigente masculina são conjugados com paixões impossíveis, violentas e primais. Quem se apaixona por Eva: JT ou Savannah? O ciúme de Laura irrompe por que não pode ser quem deseja ser ou por que está sendo, em teoria, trocada por uma mulher mais jovem? E isto sem contar, é claro, com a inclinação edipiana às avessas de Eva, atriz que persegue o papel da mãe de JT — Sarah —, na sonhada adaptação cinematográfica da autoficção da persona de Laura/Savannah, que Eva também pretende dirigir.

    Chegamos ao cerne da questão, enfim: o ponto em JT Leroy é que todas estas perguntas emergem única e exclusivamente pelas interpretações de Dern, Stewart e Kruger, um trio de atrizes descido dos céus das artes cênicas, quimicamente perfeitas em seus diálogos e interseções. Ora, isto é um problema? Não, mas não por si só, já que, por outro lado, o roteiro formulaico de Kelly, coescrito pela Savannah Knoop da vida real, e a condução desajeitada, esquemática e totalmente enfadonha do cineasta quase colocam tudo a perder, cena após cena. Tanto um bom diretor pode fazer um roteiro ruim funcionar e ultrapassar suas fraquezas quanto, como prova Kelly, um diretor ruim pode afundar uma premissa cuja sustentação soa, ao menos em teoria, praticamente garantida.

    JT Leroy, em outras palavras, é tão convencional quanto qualquer outra cinebiografia pode ser, com a montagem a fotografia limitando-se a comentar as decisões de Kelly atrás das câmeras, ao invés de desafiar a condução do realizador. Basta imaginar uma estrutura tão ousada quanto o conteúdo desta trama de troca de identidades, de desejos atravessados, de corpos e afetos em ebulição por causa de mentiras, desvios e egoísmos para compreender, à perfeição, como JT Leroy poderia ir muito mais longe nas mãos de um diretor mais capacitado. À rica interação intrinsecamente dialética de Savannah e Laura, Kelly propõe uma pasteurização em sua abordagem pouquíssimo arriscada, que derrapa em seu rumo à simplicidade bem executada: falta urgência e inevitabilidade ao longa.

    JT Leroy é decepcionante, em suma, porque poderia ser muito mais do que é, e igualmente porque performances tão singulares quanto as do trio de protagonistas mereciam um todo mais refinado e elegante, possivelmente mais caleidoscópico e psicológico. E também para um filme como este, que se pretende punk e retrata, mesmo que não intencionalmente, uma espécie de antecipação das identidade fluidas das redes sociais de hoje em dia, tudo é didático, calmo e pouco incisivo demais, quase nada ambíguo, mesmo que as relações entre as três personagens principais praticamente clamem — informando, portanto e com clareza, que direção poderia ser seguida por Kelly — por mais incerteza, suspense e oscilação.

    Quanto mais o filme tenta se aproximar de um livro considerado tão impactante quanto o “Sarah” de LeRoy/Albert, mais as falhas e a falta de contundência da primeira obra, tão esquemática quanto qualquer produção hollywoodiana do tipo pode ser, são evidenciadas. É, sim, um deleite assistir às performances melancólicas, rebeldes, angustiadas e desesperadas por conexão das três atrizes centrais. Que Dern, Stewart e Kruger quase consigam salvar o dia é só a prova final da impressionante força que o trio consegue alcançar em meio ao caos — e também o perfeito testemunho de um projeto que precisou ser salvo do descarrilamento total que quase é provocado por um cineasta nada equipado para uma missão de tamanha envergadura.

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