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    Cora Coralina - Todas as Vidas
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Cora Coralina - Todas as Vidas

    Traduzir a poesia

    por Bruno Carmelo

    É um alívio perceber que a porta de entrada do filme para a vida de Cora Coralina é a poesia. Parece uma escolha óbvia, mas não é: o diretor Renato Barbieri poderia se ater à imagem da escritora, à reconstituição idêntica aos fatos históricos, à vida de Cora como mãe, esposa, cozinheira etc. Entretanto, pela estética lúdica e pela leitura múltipla dos textos, percebe-se que a personagem é valorizada, acima de tudo, por sua produção artística.

    Cora Coralina é interpretada por diversas atrizes, que fazem menos um trabalho clássico de atuação do que uma evocação livre da escritora goiana. Ao invés de se preocuparem com a imitação, elas fornecem pontos de apoio para o espectador situar a poetisa no bairro onde morava, na casa em que cozinhava seus doces, na paisagem específica da ponte da Lapa. A aparência de Cora importa pouco: o principal é sua experiência de vida refletida nos textos. O público trava contato com as obras autobiográficas ora pela leitura floreada de Zezé Motta e Beth Goulart, ora pelo estilo duro de Camila Márdila e Teresa Seiblitz; ora com a gravidade de Walderez de Barros, ora com a fragilidade de Maju Souza.

    O subtítulo porta muito bem o seu nome, fazendo da fragmentação e da multiplicação uma maneira de comportar, simbolicamente, a riqueza interna de Cora Coralina. Enquanto especialistas discorrem sobre o estilo da escrita e sua evolução ao longo do tempo, amigos próximos contam episódios pessoais e traçam uma cronologia dos fatos. Isso não impede que a montagem trate a história da protagonista de modo excessivamente linear e verbal – somos constantemente informados para onde ela foi e de onde voltou, mas sabemos pouco do que sentiu ou expressou aos amigos. A captação das entrevistas, vale dizer, sofre com uma qualidade de fotografia e som desiguais. Mas a transição do documentário para ficção serve para construir uma espécie de lirismo campestre, contemplativo.

    A própria Cora, quando aparece, tem sua imagem fantasmática projetada na parede da casa onde morou. Este é mais um belo recurso da direção, respeitando o espectro enquanto tal, com a devida distância trazida pelo tempo e pela qualidade amadora do material de arquivo. O resultado é um olhar nostálgico, valorativo da mulher como trabalhadora, pioneira, disposta a confrontar a moral de um Brasil interiorano e conservador. Como bom pesquisador, Barbieri demonstra a necessidade de justificar suas escolhas, comprovando por vias fatuais o valor da poesia de Cora e seu caráter pioneiro na sociedade.

    Por fim, o espectador pode ter a impressão de assistir um projeto doméstico, inofensivo com suas cores pastéis e edição lânguida. O filme não traz revelações nem investigações profundas: em outras palavras, ele recusa o espetáculo. Para uma cinebiografia, esta é uma bem-vinda exceção. O diretor conseguiu encontrar uma forma visual capaz de dialogar com o estilo textual de Cora Coralina, sem rivalizar com ele ou tentar superá-lo. Esta talvez seja a melhor forma de homenagem: a poetisa tem seu estilo próprio refletido numa linguagem artística diferente da sua, de modo a estabelecer uma fértil expansão dos sentidos. O cinema apoia a literatura, que reforça o cinema.

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