Minha conta
    Faca no Coração
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Faca no Coração

    O sexo e a morte

    por Bruno Carmelo

    Dois garotos se beijam. Eles começam a se tocar, tiram a camiseta, abrem a braguilha... E olham para o espectador. Estamos dentro de um filme pornô, sendo editado por Loïs (Kate Moran). Ela observa os garotos, e os garotos observam o público. O jogo de olhares desejantes se mantém ao longo de Un Couteau Dans le Coeur (“Uma faca no coração”, em tradução literal), suspense cômico que homenageia o cinema underground, trash, amador.

    A produtora pornô é palco tanto dos momentos de desejo quanto de morte, quando um assassino mascarado começa a atacar o elenco, um por um. O instrumento do crime é um conveniente consolo-faca, com a aparência de um inocente pênis de plástico no início, até ser ativado e revelar a sua lâmina. O subgênero slasher sempre foi baseado no posicionamento voyeurista, com a introdução de armas penetrantes de evidente conotação sexual. Neste caso, o diretor Yann Gonzalez sublinha as regras ao limite do paródico.

    As encenações eróticas são divertidamente toscas, com luzes coloridas, caras e bocas dos atores e diálogos impagáveis. O filme aborda a indústria pornográfica sem ser pornográfico por si próprio – ele está muito longe da vocação de estimular sexualmente o espectador, pela noção de ridículo com que trata a própria representação. Em termos de sexo e nudez, aliás, revela-se bastante pudico, preferindo sugerir na cabeça do espectador o prolongamento de corpos e mortes que não pretende mostrar. Se existe algum estímulo ao espectador, ele se encontra no domínio da imaginação: cabe o público supor o que está acontecendo fora do enquadramento, ou nos barulhos sugestivos de uma felação ou penetração entre homens.

    Os melhores momentos ocorrem na brincadeira com a linguagem cinematográfica, através do ato de ver e ser visto. Um furo na parede, permitindo à produtora Anne (Vanessa Paradis) espiar a ex-namorada, é particularmente bem filmado, assim como o efeito fantasmagórico das projeções. Un Couteau Dans le Coeur evoca a conversão da película em fetiche e a transformação dos cinemas pornográficos em local de culto gay, onde a excitação provém da tela do cinema, mas se concretiza com os outros espectadores ao redor. O cinema, em si – a sala escura, a luz da tela, o conforto das cadeiras, a presença de anônimos ao redor – é transformado em local ritualístico.

    Infelizmente, em meio à diversão queer, o roteiro dedica tempo demais a uma investigação pouco interessante. O assassino em série serve de mero pretexto, mas quando o terço central da narrativa se consagra a seguir cada pista do criminoso, o projeto perde o humor, a leveza, entrando numa linearidade pouco estimulante (vide todo o imbróglio envolvendo pássaros e florestas). A situação é prejudicada por uma protagonista superficial: Anne se desloca impassível diante do caso, apesar de ter motivos de sobra para construir certa complexidade emocional. Ela trabalha com a ex-namorada, que a rejeita, tem um prazer mórbido em reencenar os crimes em versões pornô, uma apatia suspeita diante das mortes, e se mostra corajosa o suficiente para adentrar uma floresta macabra sozinha.

    Vanessa Paradis não é uma atriz de muitos recursos, e o filme busca utilizar essa limitação a seu favor. A personagem recebe diálogos engraçados de tão artificiais (“Meu coração está seco de você”, “Mas você tem que me amar!”, e “Pega na minha mão”, durante uma conversa telefônica). Mas nem assim a intérprete consegue tirar grande proveito do teor trash de sua personagem. Nicolas Maury, pelo contrário, está bastante confortável no papel do assistente tão gentil quanto erotizado, e a magnética Romane Bohringer rouba a cena nos poucos momentos em que aparece.

    Un Couteau Dans le Coeur termina de modo eficiente, atando as pontas soltas da frágil investigação criminal. O roteiro resgata, na conclusão, sua paródia metalinguística, em uma cena eficaz. É pena que não vá mais fundo na brincadeira, na exploração das imagens e dos fetiches, perdendo tempo considerável nos caminhos previsíveis do suspense policial.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

    Quer ver mais críticas?

    Comentários

    Back to Top