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    Vida, Animada
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Vida, Animada

    Um filme com alma

    por Rodrigo Torres

    Animação deriva do latim anima, que significa alma. Desenho animado, portanto, seria mais que um desenho em movimento, um desenho com alma. Vida, Animada faz jus à formação da palavra: é um filme com alma e que denota a alma presente nas animações da Disney. Não à toa, é o mais original na disputa pelo Oscar 2017 de documentário e também o mais bonito. Capaz de transformar uma premissa com potencial de soar cafona numa linda história de superação, amor de família e que visibiliza com pura ternura uma doença pouco discutida: o autismo.

    Owen Suskind foi uma criança feliz, brincalhona, que foi "desaparecendo" com apenas três anos de idade. O rápido processo de regressão do menino devastou seus pais, Ron e Cornelia, confundiu o irmão mais velho, Walt. Um dia, depois de anos sem se comunicar, Owen reproduziu uma fala de A Pequena Sereia. Contra toda cautela médica, os genitores se agarraram a esse fio de esperança. E descobriram que poderiam se travestir de personagens da Disney para se comunicar com o filho autista.

    "Quando ficamos tão amigos?", pergunta Iago (no caso, Ron), e o solitário Owen responde: "Quando vi Aladdin, você me fez sorrir". Esta resposta, dilacerante, denota a consciência do menino de sua solidão, sua tristeza, por sua incapacidade de se comunicar, socializar. E a complexidade do pensamento de uma criança com tão grave distúrbio neurológico. As animações da Disney educaram Owen, e lhe permitiram expressar o que sentia. Quando isto acontece, notamos como seu recolhimento proporcionou uma profunda compreensão de si e da vida — privilégio de poucas pessoas ditas normais.

    Isso é mero preâmbulo de uma história incrível, que funciona tão bem graças à montagem inteligente de Roger Ross Williams. O início de Vida, Animada é baseado principalmente em Ron Suskind, jornalista premiado com Pulitzer, autor do livro em que o doc se baseia ("Life, Animated: A Story of Sidekicks, Heroes, and Autism") e contador de histórias excepcional. Seu papel como narrador é fundamental no envolvimento do espectador. Isto feito, o diretor tira o pai de cena, impedindo-o de roubar a cena, estabelecendo o protagonista de direito. E quando Owen fala, desaba um mundo de revelações.

    Interações com a câmera ditam não só a condição de Owen, como sua identificação com os personagens da Disney, conhecidos pela clareza de suas expressões. (A facilidade com que eles se comunicam, aspecto fundamental para a compreensão do garoto com os filmes, traz à luz uma discussão fundamental sobre a acessibilidade da linguagem, no meio que for — cinema incluso.) Os "parceiros" (sidekicks), como o jovem trata os personagens coadjuvantes das animações, se destacam nesse sentido. Owen se enxerga neles: "Os parceiros são divertidos, cômicos, doidos, brincalhões, amigáveis e fofos. Eles ajudam o herói a cumprir seu destino, e os apoiam", ele diz, agora demonstrando um entendimento de suas limitações, de como e do que é, numa consciência que nunca se confunde com resignação.

    Muito pelo contrário. Superação é a palavra que define Owen. Além do passado, conhecemos o presente do jovem adulto. O problema de comunicação é um obstáculo tratado, mas os desafios são diários e outros maiores, como o de morar sozinho, encontrar um trabalho e envelhecer (universais), são iminentes. A câmera de Ross Williams capta o nervosismo de Owen com sutileza, caminhando a esmo e reproduzindo movimentos repetitivos. Animações a mão sobre o menino, em preto e branco e nebulosidade em seus momentos de medo e angústia, ganham cor para ilustrar a história que ele próprio criou: "A Terra dos Parceiros Perdidos", uma fábula sobre os sidekicks da Disney. Uma fábula autobiográfica.

    Um dos principais trunfos de Vida, Animada é tratar a questão de Owen e o autismo com sensibilidade. E muito se deve à comovente honestidade da família Suskind. A preocupação na fala e nos olhos de Walt, que será responsável pelo irmão mais novo quando os pais se forem, a reflexão pessoal de Ron que diz muito sobre o mundo em que vivemos: "Quem define o que é uma vida feliz?", o pai se pergunta, constatando um egoísmo seu que reflete um aspecto latente na sociedade — uma necessidade constante de julgar tudo que saia de um paradigma de normalidade traçado pelo meio, as individualidades desespeitadas que redundam na crueldade do bullying que machuca Owen e tantos mais.

    Para que se reflita a respeito, é preciso empatia. Vida, Animada, um documentário honesto em si, nunca mascara a enfermidade de Owen (sua condição é retratada com integralidade e respeito), e também valoriza os momentos que revelam o grande ser humano que há por trás do autismo. Assim, numa conversa íntima entre irmãos, Walt — preocupado em ensinar coisas que o caçula não aprenderia numa animação da Disney — pergunta se ele sabe que casais usam outra coisa além dos lábios no momento do beijo. Essa outra coisa, na ótica de Owen, não é a língua, são os sentimentos — que transbordam numa pessoa de alma tão bela como Owen Suskind.

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