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    Kiki
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Kiki

    Família dos excluídos

    por Bruno Carmelo

    Entre os vários grupos vivendo à margem das grandes cidades norte-americanas, existem os jovens negros gays e pobres, muitas vezes abandonados pelas famílias e sem emprego fixo. Estes garotos se reúnem nas noites “kiki”, com competições de dança extremamente regradas, baseadas nos figurinos extravagantes e amplos movimentos dos braços, julgados por um grupo impiedoso de jurados. A subcultura kiki permite que homens sejam femininos, mulheres sejam masculinas e transexuais dos dois gêneros possam se encaixar sem dificuldade.

    Os bailes, portanto, representam um momento de inclusão para excluídos. Não por acaso, o galpão onde cada grupo treina é batizado de “casa”, com um líder chamado de “pai” ou “mãe”, com direito a diversos “filhos”. A estrutura oferecida pela dança e pelo travestimento é uma ideia de substituição do lar tradicional pela família baseada em afinidades eletivas. Neste documentário, quando dois membros de uma casa começam a brigar, o pai intervém e coloca ordem na disputa dos filhos, lembrando que aquele é um lugar onde todos são bem-vindos.

    A diretora Sara Jordenö efetua um trabalho de pesquisa excelente, usando o kiki para compreender quem são estes jovens, como chegaram onde estão e para onde podem ir após os encontros. Partindo de um objeto de estudo preciso, ela efetua investigações sociais, políticas e econômicas, que acabam traçando um mosaico potente da marginalidade em países de primeiro mundo. Quando um dançarino compra sua roupa feminina, ele revela os comentários preconceituosos que enfrenta na loja, quando outra caminha pelas ruas, passa diante da escola onde começou a pensar em sua transição transexual. De modo orgânico, o filme incorpora discursos pessoais e politizados sobre a diversidade.

    Os inúmeros méritos desse projeto passam, em primeiro lugar, pela representatividade. Visitando casas distintas e competições variadas, a cineasta conversa com jovens transexuais, latinos enfrentando problemas de dependência de drogas, garotos soropositivos – ou ainda soronegativos que acreditavam ser positivos –, aqueles que foram expulsos de suas casas ou os raros que tiveram apoio familiar. As entrevistas são dinâmicas, ao mesmo tempo fortes e desprovidas de sentimentalismo. A diretora elabora um painel de jovens fortes, inteligentes, de uma cultura política e social invejável.

    A estética de Kiki também chama a atenção. O projeto consegue combinar momentos naturalistas de dança nas ruas e no píer com danças encenadas em palcos, para a câmera, misturando depoimentos em off, viagens pelo mundo para promover os bailes e momentos de ativismo. Através de uma fotografia deslumbrante, do uso rico e nada óbvio de trilha sonora e da montagem inteligente, cria-se a ideia de que todas estas esferas estão entrecruzadas: dançar nos bailes kiki faz parte da vida familiar dos jovens, mas também representa um ato político de enfrentamento do sistema, uma esfera social nas quais as pessoas se encontram e namoram, e uma fonte de renda para a manutenção das famílias. O kiki torna-se uma forma de existir no mundo.

    A bela ideia de transformação pessoal através da arte é demonstrada de modo exaustivo, prestando atenção às origens, às configurações atuais e às consequências de cada atitude dos personagens. Kiki é um desses documentários raros, ao mesmo tempo potentes politicamente, deslumbrantes esteticamente e dotados de um bem-vindo e inesperado lirismo.

    Filme visto no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2016.

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