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    Todas as Cores da Noite
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Todas as Cores da Noite

    Os crimes da burguesia

    por Bruno Carmelo

    Este filme nacional se abre com a narração de uma lenda. Conhecemos a história de Tiara (Giovanna Simões), estudante de medicina que, uma noite, se envolve num ato de agressão. O episódio traz consequências mais fortes, e depois repercussões ainda maiores, numa espiral de violência. Trata-se de uma lenda urbana, talvez aumentada ou diminuída pelo gosto popular. De qualquer maneira, nenhum envolvido teria sido preso ou incriminado. Os atos são tão bárbaros quanto amorais.

    Outras histórias, como a de Tiara, são enunciadas ao longo de Todas as Cores da Noite. Os quatro personagens principais, Iris (Sabrina Greve), Fernanda (Brenda Lígia), Elga (Sandra Possani) e um homem sem nome (Rômulo Braga) têm direito à sua própria narrativa de crime sem castigo, de violência sem culpa nem consequência. Em comum, trata-se de narrativas em terceira pessoa que se misturam à história em primeiro plano, revestidas de uma aura de fantasia, ou pesadelo. O espectador nunca sabe se o que está vendo ou ouvindo é verdade, se os personagens diante de seus olhos existem de fato. Brinca-se com o poder da sugestão: as imagens que o público cria em sua cabeça são muito mais fortes do que qualquer cena.

    O projeto assemelha-se, portanto, às reuniões de amigos para contar histórias de terror, para mesclar fatos a causos e fantasias, na intenção de provocar os sentidos do interlocutor. O diretor Pedro Severien faz ótimo uso destes contos, sem distinguir esteticamente o verdadeiro do falso, o presente do passado, e propondo representações intrigantes para os diálogos. Basta ver, por exemplo, a belíssima maneira de mostrar a solidão da estudante de medicina, através de uma caminhada pelo hospital vazio, ou então a dor da humilhação sofrida por Fernanda, arrumando os cabelos em frente ao espectador-espelho.

    Assim, as narrações constantes fogem ao efeito comum de redundância: as cenas nunca representam exatamente o que se escuta. O som e a imagem se completam de forma inteligente, gerando no público o prazer seguro do contato com a violência sem praticá-la de fato. Como na maioria dos filmes de terror, o espectador é colocado como voyeur e cúmplice, presenciando a transgressão sem precisar sentir qualquer culpa – afinal, estamos no território do faz de conta. O caráter de expurgo emocional típico do gênero é utilizado com precisão por este projeto rico em sugestões, e ao mesmo tempo amargo no retrato de pessoas cruéis, apáticas, egocêntricas.

    Todas as Cores da Noite encerra-se em menos de 70 minutos, tempo suficiente para fechar a ciranda de personagens que se agridem sem preocupação com os sentimentos alheios. A ação real se passa num apartamento luxuoso, de vista para o mar, de onde a câmera transmite o sentimento de segurança e impunidade – um cadáver fica disposto no chão, visível a qualquer um que entrar, enquanto Iris espera pela chegada de pessoas importantes que vão se livrar do incômodo crime em sua casa. Não existe punição, concreta ou psicológica, a estas figuras fantasmáticas. Protegida pelo status, essa “gente fina e distinta” constitui um painel assombroso da sociedade contemporânea, ocupada apenas com o gozo do poder, do sexo, do sentimento de superioridade em relação aos demais.

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