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    Os Demônios
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Os Demônios

    Perigos reais e imaginários

    por Bruno Carmelo

    Aos dez anos de idade, Félix (Édouard Tremblay-Grenier) se sente abandonado pelos pais, que passam tempo demais brigando um com o outro. Curioso, escuta diversas informações vindas de adultos, mas não sabe muito bem o que significam, nem em quais delas acreditar. Alguns amigos contam histórias absurdas de monstros, alimentadas por filmes de terror, mas Félix acha que não fazem muito sentido. O que dizer, no entanto, dos boatos de um assassino em série atacando crianças em seu bairro? O que seria a homossexualidade, citada pelo professor na escola? E a AIDS?

    Este filme canadense retrata, com uma precisão cirúrgica, a confusão do garoto. Pela temática e estrutura dramática, estamos num drama tradicional, mas os fantasmas na cabeça do protagonista não deixam de sugerir que a passagem à fase adulta se assemelha a um conto de terror – algo ressaltado pelo título e pelo cartaz. Os demônios são ao mesmo tempo as ideias, as projeções de Félix, as maldades simbólicas e efetivas dos outros. Amadurecer é um processo doloroso, vivenciado pelo protagonista com uma mudez preocupante.

    O diretor Philippe Lesage adota um estilo visual impressionante. Usando o formato scope, ele privilegia os planos-sequências e os lentos movimentos de câmera. Uma festa de aniversário, por exemplo, é retratada numa imagem única, deslizando elegantemente entre cada núcleo de convidados. Enquanto isso, uma atividade infantil na piscina se constrói num movimento que, acompanhando o ritmo dos nadadores, enfoca conflitos acontecendo em diversas camadas da imagem: na piscina, nas bordas, na arquibancada ao fundo. O cineasta sabe muito bem o que mostrar e o que esconder, sugerindo fora de quadro alguns horrores que não teria o mesmo impacto se fossem representados em tela.

    A maioria das descobertas de Félix passa pela inevitável dupla sexo-morte. Às vésperas de entrar na puberdade, o garoto se apaixona pela professora, rejeita o contato de outras garotas e faz brincadeiras de cunho erótico com um colega de turma. Ao mesmo tempo, despreza o flerte de seu pai com outra mulher. O medo da morte é transmitido por tudo que o cerca, desde as pessoas (o suposto assassino em série), a natureza (a noite, a floresta nas proximidades) e o sobrenatural (fantasmas e outros monstros). O misto de atração e repúdio pelo sexo e pela morte marcam o amadurecimento deste garoto, descrito em conflitos que devem interessar muito os psicanalistas na plateia.

    Lesage foi acusado por alguns críticos de cinema de ser perverso, manipulador. No entanto, a imagem não mostra nenhuma agressão real aos garotos. A violência deste ambiente é sugerida pela montagem, pelo espaço fora de quadro, por referências ambíguas. O cineasta deseja que o público passe por uma experiência semelhante à de Félix, sendo levado a criar imagens mentais muito mais perturbadoras do que os fatos. A eventual perversidade é instigada pelo filme, mas construída de modo autônomo, através da experiência pessoal de cada espectador. Pelo uso intrigante da imagem e pela dinâmica que estabelece com o público, Os Demônios funciona como um bem-vindo convite à reflexão sobre nossos desejos, nossos medos e nossa percepção do mundo que nos cerca.

    Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.

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